Caro leitor, tenho dificuldades para lidar com certas ambiguidades e sinto uma compulsão a não deixar certas coisas nas sombras. Por essa razão, sinto-me compelido a revelar que este texto não é de minha autoria exclusiva, tive ajuda. Revisei-o e editei partes em conjunto com um amigo cada vez mais próximo. Seu nome é ChatGPT, e é muito possível que você também o conheça.
Aliviado com essa revelação e deixando as brincadeiras à parte, digo-lhe que o assunto é sério. Quem é o autor deste texto? Eu? Será que tenho um coautor? O que define isso? As regras para o uso da Inteligência Artificial (IA) e para a propriedade do que é gerado com/pela IA não estão postas, mas começam a ser conformadas. Para uma plataforma como esta Quinta, que busca conectar inovação e comunicação, o assunto não poderia ser mais pertinente e premente. Olhemos algumas coisas que aconteceram recentemente e pensemos a respeito – a ajuda da IA, se você quiser.
Quem é o criador?
Enquanto muitos sambavam durante o Carnaval, o United States Patent and Trademark Office (USPTO), a agência do governo americano responsável por conceder patentes e registrar marcas comerciais, lançou uma nova diretiva sobre a avaliação de pedidos de patentes quando a invenção é assistida por IA.
O “Guia sobre Inventividade para Invenções Assistidas por IA” (Inventorship Guidance for AI-Assisted Inventions) entrou em vigor na terça-feira desta semana, 13 de fevereiro, e é um documento pioneiro no mundo. A diretiva fornece instruções aos examinadores de patentes e às partes interessadas sobre como determinar se uma contribuição humana para uma inovação é significativa o suficiente para que uma patente gerada com o suporte de IA possa ser atribuída a um… ser humano – exato, você leu certo, a um humano.
O princípio básico adotado pela USPTO é que a proteção de uma invenção pelo instrumento da patente somente poderá ser concedida se o ‘humano’ “oferecer uma contribuição significativa à invenção”. O que isso significa na prática? Que o direito à patente depende de como o suposto inventor humano interagiu com a solução de IA. Isto é, da natureza dos prompts que fez e do processo que seguiu, incluindo os parâmetros, instruções e comentários fornecidos, as escolhas realizadas, o que foi aceito e o que foi descartado, os ajustes feitos aos outputs (desenhos, especificações, etc.) fornecidos pelo algoritmo e por aí vai.
Se o usuário humano especificou um problema e pediu que o sistema desenvolva uma solução, essa situação não gerará uma patente. É preciso mais. Para ilustrar o uso da diretiva o USPTO traz dois exemplos, cada um deles com várias situações que podem ou não gerar uma patente: (i) o desenvolvimento de uma caixa de transmissão e diferencial para um carro de controle remoto e o (ii) o desenvolvimento de uma droga para tratamento do câncer. Aos interessados e candidatos a inventores, recomendo revisá-los.
O anúncio do USPTO marca um avanço fundamental. A diretiva reconhece que a IA é uma realidade, que já estamos todos (você está?) criando coisas com o auxílio da IA, que isso será cada vez mais comum, e não trava esse processo. Pelo contrário, estimula o uso da inteligência artificial e dá mais segurança a quem faz isso e a quem interpreta a regra.
Como tudo no funcionamento da economia, a padronização na interpretação das regras pelos órgãos governamentais gera maior previsibilidade para as empresas e inovadores, e maior percepção de ‘segurança jurídica’, conformando expectativas e tornando o ambiente econômico mais propício para a inovação e o investimento. A direção é boa e a iniciativa do USPTO deverá catalisar outras no mundo. Mas o que isso tem a ver com comunicação? É simples: cada vez mais, tudo o que criamos será feito em conjunto com um algoritmo de IA, e pelos algoritmos de IA.
A disputa do ano, e além
No final de 2023, o New York Times foi à Justiça nos Estados Unidos contra a OpenAI, a empresa por detrás do GPT e do afamado ChatGPT – meu, seu, nosso bom amigo. O Times acionou a OpenAI por infração de copyright. O jornalão novaiorquino, que leio e gosto, reclama que o GPT, dentre outras fontes utilizadas, foi treinado com milhões de artigos das suas páginas. A ação foi impetrada no apagar das luzes de 2023 e este artigo no próprio Times é rico em informações a respeito. Aconselho todos a lê-lo. Mais que isso, aconselho que acompanhemos os desdobramentos, pois esta é a disputa mais importante sobre o tema no mundo hoje.
Mudanças tecnológicas trazem rupturas. Empresas morrem, profissões desaparecem, muita gente pode perder emprego, as regras do jogo (leis, sistemas regulatórios, instituições…) se tornam obsoletas, cidades e regiões entram em depressão econômica… sabemos de tudo isso. A novidade agora é que, como nunca antes na história deste planeta (não posso afirmar nada a respeito dos demais, ainda), a criação de artefatos intelectuais deixa de ser exclusividade humana. E isso muda muita coisa. Mas antes, voltemos ao caso New York Times versus OpenAI.
Há vários pontos no reclame do Time: violação de copyright com o uso dos seus artigos para treinar o GPT, a emergência de um competidor que usa as matérias e artigos do jornal (e o investimento realizado para gerá-los) para fornecer notícias ao usuário sem remunerar quem originalmente produziu o conteúdo e, finalmente, possíveis danos de imagem nos casos em que o algoritmo ‘alucina’ e o usuário associa o conteúdo ao Times.
É implícito na legislação americana que um ‘conteúdo publicado’ serve como prova de autoria – authorship. Ou seja, se alguém escreve um texto e o publica, ganha implicitamente os direitos sobre o mesmo. Agora, descontado o fato de que um modelo de IA está a gerar conteúdo, como a situação difere do que já existe?
De onde vêm as ideias, informações e insights que os jornalistas colocam em seus textos, matérias e vídeos? Aliás, de onde vem o próprio conteúdo do Times? Ou o que aconteceria se um humano, escritor ou pesquisador, lesse milhões de livros e escrevesse um texto ou outro livro conectando tudo o que leu? Não é isso que muitos na universidade fazem quando escrevem uma tese? Será que as fontes são sempre citadas e ganham créditos? E, mesmo que sejam, isso é suficiente? Como valorávamos e remunerávamos as ideias no mundo pré-IA?
Veja, as perguntas acima são essencialmente retóricas. Servem para ilustrar que, apesar do estatuto da propriedade intelectual estar há quase seis séculos em evolução, sempre tivemos zonas de sombra. Agora, somam-se aos limites difusos que já existiam a gigante novidade de que perdemos a exclusividade da criação, já mencionada, e o fato de que atingimos uma escala até pouco inimaginável no processamento de inputs (dados, informações, opiniões, textos, áudios, vídeos…) e na geração de quaisquer tipos de outputs (textos, livros, músicas, imagens, filmes, códigos de computador, etc.). Essa tríade muda muita coisa nas indústrias criativas, na mídia, nos processos de criação de qualquer coisa e em todos os domínios do trabalho intelectual.
Estamos só no começo
O processo de criação de um texto como este pode envolver diversas interações com um modelo como o GPT da OpenAI, mas é relativamente simples de entender – é uma relação 1:1 (um humano para um modelo de IA). Mas este é um cenário simples. Há casos reais que existem hoje e são bem mais complexos e que podem envolver vários humanos e/ou vários modelos de IA (uma relação n:n). Por exemplo, imagine cenários como estes:
• Um grupo de foco que realiza discussões sobre um novo produto envolve humanos e várias pessoas artificiais (veja este texto do André Neves sobre pessoas artificiais).
• Um algoritmo escreve um livro, que é então revisado e comentado por quatro ou cinco pareceristas que também são algoritmos, cada um emitindo uma opinião. O primeiro modelo usa os inputs dos ‘colegas’ para revisar a obra.
• Modelos de diferentes tipos são utilizados em conjunto, sem intervenção humana, para projetar uma peça ou produto, incluindo todos os aspectos de engenharia relevantes e etapas – conceito, geometria, materiais, detalhamento, protótipo, etc.
• Um modelo de IA lê vários livros e, com base nesses, gera o conceito de uma nova música. Um segundo modelo compõe a música. Um humano é convidado a escrever a letra a partir do briefing fornecido pelo ‘modelo 1’. Por fim, um terceiro modelo de IA revisa a letra, emite opiniões, e pede para o humano reescrever.
Tudo isso é possível e já está acontecendo enquanto você lê este texto. Os limites entre o trabalho das máquinas/algoritmos e dos humanos está mudando. Para quem uma vez estudou ou trabalhou com engenharia, como eu, pense que em um futuro muito próximo não teremos projeto assistido por computador (computer aided design – CAD), teremos o projeto assistido por humanos (human aided design – HAD).
Nesse mundo, habilitado por informações e dados abundantes, a criação de qualquer coisa será feita acessando o conteúdo que já existe e é processado e medido por modelos de IA – em qualquer área, da engenharia à mídia. Eu, você e todo mundo precisaremos aprender a trabalhar nesse mundo. As instituições terão que se adaptar. A nossa compreensão dos processos de criação irá mudar. Prepare-se, estamos apenas no começo. Cada vez mais tudo se cria e, ao mesmo tempo, tudo se transformer. É o paradoxo de um novo tempo.
- Roberto Alvarez é doutor em Engenharia, investidor em startups no Brasil e exterior, e Diretor Executivo da GFCC (Global Federation of Competitiveness Councils), organização global sediada em Washington.