A enorme demanda por conteúdos analíticos encontra-se em novo momento com a crescente utilização de recursos da Inteligência Artificial (IA) generativa para a composição de textos, imagens e vídeos. O falseamento do ambiente factual, prática potencializada pelos novos instrumentos digitais, reverbera também no exercício de interpretação da realidade, com impacto na sociedade e nas empresas.
É fácil entender que a profusão de notícias, disponíveis tanto na mídia tradicional como nas diversas redes sociais, abre espaço para a busca de análises capazes de dar sentido ao caos informacional. A predominância da operação em tempo real, alavancada pelo espaço on-line, torna ainda mais acelerado o circuito noticioso ininterrupto, que pode confundir e atordoar o público. Fragmentos dispersos de informações completam esse mosaico desordenado.
Exemplos marcantes
Alguns marcos históricos ajudam a explicar o quadro atual. O período que abrange as duas grandes guerras mundiais do século 20 foi pródigo em exemplos no campo da comunicação. A eclosão do primeiro conflito, em 1914, flagrou os norte-americanos desprovidos de elementos para prenunciar a dimensão do que estava por vir em âmbito global. Em outras palavras, os Estados Unidos foram colhidos de surpresa por aquela que é considerada uma das campanhas militares mais dramáticas do passado.
A responsabilidade por esse repertório raso de predições foi creditada parcialmente às agências noticiosas, ainda uma novidade na época, por se restringirem ao registro dos fatos – insuficiência considerada notória. A Associated Press, uma das grandes referências desde aquele tempo, esteve no centro da polêmica, acusada de limitar-se à transmissão factual do óbvio. O esforço de contextualização dos acontecimentos, a partir dessa avaliação crítica, receberia o nome de interpretative reporting.
A atuação cada vez mais intensa do rádio e da televisão no decorrer dos anos seguintes, inclusive com as transmissões ao vivo, acentuou ainda mais a demanda por interpretação e sentido do universo noticioso. O chamado jornalismo de profundidade, de cunho interpretativo, desenvolveu-se basicamente no meio impresso como resposta ao impacto vertiginoso da mídia eletrônica. Essas fronteiras fortemente demarcadas se mostrariam fluidas na história mais recente da comunicação.
O cenário contemporâneo no Brasil comprova que a oferta de análises no espaço midiático, seja no meio impresso ou eletrônico, tornou-se lugar comum, muitas vezes resvalando para o perfil meramente opinativo. À parte a polêmica que costuma dividir os estudiosos a respeito da existência do gênero interpretativo em contraste com a formulação direta de opinião, o que se procura destacar é a ânsia de dar sentido à avalanche de conteúdos factuais lançados ao público.
Para o bem e para o mal
Em primeiro plano, a IA generativa tem como consequência, antes de mais nada, a exacerbação da capacidade de geração de novos conteúdos, seja pelo aumento da produtividade nas redações jornalísticas tradicionais ou pelo acesso do público a recursos digitais disruptivos, que amplificam a produção de emissões próprias. É previsível, portanto, que o cenário de saturação informacional se agigante de maneira exponencial.
Acrescente-se a esse panorama, já suficientemente desafiador, a tarefa hercúlea de identificar as informações falsas que atravessam cada vez mais os domínios da comunicação. E que também serão incrementadas pela IA com a geração ardilosa de textos, vídeos, áudios, imagens – o que for necessário para mimetizar acontecimentos reais. Os ensaios de regulação desses novos instrumentos mostram-se, até agora, francamente aquém da perspectiva de alcançar os objetivos propostos.
Assim como nos momentos históricos mencionados, o interesse por conteúdos analíticos tende a aumentar. Desta vez, para cumprir uma dupla ou tripla função: apontar os traços de informações falsas, contextualizar os acontecimentos e interpretar seu significado. São demandas exigentes, que vão impor novos padrões de atuação não apenas para os profissionais do jornalismo, mas também para organizações políticas e empresariais que dependem de uma interface confiável com o público.
A própria IA generativa poderá oferecer recursos para o enfrentamento dessas tarefas, como um antídoto para as doses elevadas de desinformação e de multiplicação de conteúdos que proporciona. No campo analítico, entretanto, será preciso considerar aspectos muito mais subjetivos do que a verificação de uma imagem adulterada ou a redação de um texto informativo. A interpretação, mesmo que não se confunda com a mera opinião, comporta vieses, tendências ideológicas, pontos de vista, ângulos mais ou menos conservadores e progressistas, entre outras características.
Um exemplo simples pode ilustrar esse contexto, a partir de um tema que exaustivamente divide o campo econômico e político no Brasil: o controle – ou não – das contas públicas. Pergunte-se ao ChatGPT a razão pela qual é importante conter os gastos públicos e se terá uma lista extensa de vantagens, desde a credibilidade financeira até a equidade intergeracional, passando pelo controle da inflação e pela proteção aos choques financeiros.
Um ponto de partida inverso, ou seja, um prompt que busque a avaliação sobre a importância da expansão dos gastos públicos em países emergentes, terá como retorno outra lista generosa de justificativas, do estímulo ao crescimento econômico à redução das desigualdades sociais ou o impulso à inovação – motivações, aliás, muito próximas às que foram elencadas pelo governo atual para lançar mais uma versão de política industrial no país.
A interpretação final de temas complexos como esse dependerá do perfil dos humanos que alimentam as bases de dados, com seus princípios e valores próprios, ou que assumem o arremate final dos conteúdos oferecidos a terceiros. De qualquer maneira, em diversos aspectos, a IA generativa poderá ser um relevante propulsor do esforço incontornável de tradução da realidade, com recursos ágeis para articulação de informações, hierarquização de dados e elaboração de exercícios argumentativos.