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Mirna Spritzer

Atriz em todos os momentos e sentidos

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Mirna acredita que é próprio das atrizes ter uma visão fantasiosa e ficcional do mundo (Foto: Alexandre Bazzo)

Novidadeira e curiosa é como se define a atriz gaúcha Mirna Spritzer. Foi esse espírito inquieto que a levou a múltiplas atividades ao longo da carreira profissional – professora de arte dramática, autora de livros, diretora e pesquisadora de radioteatro, entre as mais notórias.

Tudo isso, no entanto, sempre convergiu para o sentido maior de sua vida, que é o ofício de representar, como ela conta na entrevista que concedeu nos intervalos de ensaios para o teatro e gravações para a televisão.

“Todas as coisas que faço giram em torno do fato de ser atriz”, deixa claro Mirna, que enxerga o mundo com a visão fantasiosa e ficcional que considera característica das atrizes. Tornar-se atriz, o que ela acha que sempre foi, significou ainda uma atitude transgressora para alguém que se reconhecia como uma moça bem-comportada e parecia destinada a outras searas profissionais.

A sua formação como atriz passa principalmente pelo teatro, “ali, com o público respirando junto”. Uma citação de Peter Brook ilustra bem o profundo interesse de Mirna pela maneira como os atores criam seus personagens: “Um processo de carne e sangue que se desdobra na sua frente”. E é curioso que ela tenha procurado preservar o seu próprio processo criativo sob um manto de mistério, como se desvendá-lo pudesse comprometer a liberdade de seu olhar.

Uma parte de seus estudos pode ser desfrutada no livro A Formação do Ator: Um Diálogo de Ações, publicado pela Editora Mediação. É possível também conferir um de seus trabalhos mais recentes como atriz no site www.clicrbs.com.br/rbstv, que exibe episódios da série Fantasias de Uma Dona de Casa. Produzida para a televisão gaúcha, a partir um curta-metragem realizado pela Casa de Cinema, a série é um bom exemplo dos caminhos culturais que o Rio Grande do Sul aprendeu a trilhar. (Beth Cataldo)

“Muitas vezes estamos mais próximos de Montevidéu e Buenos Aires do que do Rio ou São Paulo.”

Pergunta – É muito raro se fazer uma ponte entre Minas e o Sul, não?
Resposta – É uma pena, porque somos muito parecidos.

P – Como você avalia essa realidade cultural brasileira em que existe pouco intercâmbio direto entre as várias regiões e uma mediação constante do eixo Rio-São Paulo?
R – Acho que isso é uma complicação e talvez para nós, aqui no Sul, seja um pouco pior. Porque muitas vezes – muitas vezes mesmo – estamos mais próximo de Buenos Aires e Montevidéu do que do Rio, São Paulo ou Belo Horizonte. E principalmente porque, necessariamente, por mais que a gente se esforce, não somos a metrópole, seremos sempre a província. A gente até brinca, no caso de Porto Alegre, que temos todos os defeitos de uma cidade pequena e todos os defeitos de uma cidade grande.

P – Não há um certo empobrecimento cultural do País na medida em que se reduz o espaço das manifestações culturais fora dos grandes centros?
R – Há uma questão forte aqui no Sul porque somos muito bairristas. Costumamos brincar que é difícil passar o rio Mampituba , que divide o Rio Grande do Sul com Santa Catarina. Temos sempre tantas exigências e condições em relação a tanta coisa que, às vezes, é complicado. No caso do teatro, vivemos no passado um êxodo bastante forte para São Paulo e Rio de Janeiro, quando se foram Paulo José, Lilian Lemmertz, Fernando Peixoto, Ítala Nandi… Depois, durante um certo período, as pessoas ficaram aqui. O que a gente vê agora é uma coisa mais interessante, são muitos grupos de teatro circulando, seja pelo projeto Petrobras, pelo Sesc, ou por conta própria mesmo, por projetos do próprio grupo. Com bastante freqüência, os grupos saem e se apresentam fora, voltam, vão a festivais, voltam – isso permite uma circulação interessante. Mesmo assim, muitos atores e diretores ainda saem em busca de mais visibilidade e oportunidades. Também em termos de circulação, depois de muito tempo, já pelo terceiro ou quarto ano, temos o Palco Giratório do SESC, que é um projeto interessante, que traz espetáculos de outros lugares do Brasil, e não necessariamente de São Paulo ou do Rio. Ou pelo menos não aqueles que seriam os espetáculos de celebridades.

P – Aqueles que chegariam naturalmente ou comercialmente?
R – Exato, são espetáculos basicamente de grupos. Então, me parece que essa é uma forma interessante de intercâmbio, de conhecer um pouco o que as pessoas estão fazendo. De Belo Horizonte, a gente tem com bastante freqüência o Grupo Corpo e o Grupo Galpão. O Galpão é freqüentador assíduo de Porto Alegre, ainda bem. Sou uma grande admiradora deles, são muito relacionados com os grupos gaúchos, como o Terreira da Tribo, que é um grupo importante aqui. Acho que essa é uma maneira que tem conseguido dar conta um pouco dessa defasagem, para a gente conseguir saber sem precisar carimbar o passaporte em São Paulo ou no Rio de Janeiro. E principalmente, isso é importante, podendo conhecer de São Paulo e do Rio outros trabalhos que não aqueles ligados aos atores que estão na Globo – nada contra, enfim, mas que possam haver outros também.

P – Uma questão que temos colocado para todas as atrizes entrevistadas é sobre a motivação de se tornar atriz. Existe uma certa dose de ousadia e de transgressão nesse ofício?
R – Acho que sim. É muito interessante porque vivo justamente um momento em que estou filmando e ensaiando um espetáculo, depois de algum tempo em que fiquei muito dedicada ao ensino e principalmente à pós-graduação. Estou vivendo um momento de ser atriz intensamente. Acabei de fazer 51 anos e, talvez pela idade, tem um momento da vida em que tu começas a perceber que os caminhos nunca foram separados. Por algum motivo, a gente separou o que é inseparável. Tenho a sensação de que é um pouco o sentido desse momento. Na verdade, todas as coisas que faço giram em torno do fato de ser atriz. Eu costumo brincar que a minha visão do mundo é uma visão de atriz, é fantasiosa, ficcional… Acho que é uma forma de transformar as coisas, de trazer para um outro patamar, que é mais ficcional, digamos assim. É quase como se ver de fora, estar se vendo o tempo todo. Tenho certeza de que amo dar aulas, trabalho com formação de atores, trabalho com rádio, e tudo o que eu faço parte desse princípio, que é o de ser atriz. Quando decidi na prática ser atriz, acho que isto já estava decidido dentro de mim. A impressão é que eu só assumi. Primeiro, fiz faculdade de arquitetura, me enrolei, me enrolei, até que assumi que ser atriz era o que eu ia fazer na vida. Pensando hoje, acho que essa decisão tinha sido tomada muito tempo antes e que, na verdade, eu só fiz dar um pouco de volta para ter coragem e também para tranqüilizar os meus pais.

P – Os seus pais eram contra, de alguma maneira?
R – Eles nem chegavam a ser contra, eram preocupados com o que isso significava. Com quem ela vai conviver, como é que ela vai se virar para sobreviver, não é?

P – Foi uma vocação prematura para você?
R – Acho que sim, acho que sim. Minhas lembranças de escola são relacionadas a isso. A impressão que tenho é que tudo que eu fazia na escola, mesmo o que não era teatro, era teatro. Essa coisa de ser a palhaça da turma. Não quer dizer que fosse desembocar numa carreira de atriz, mas, no meu caso, eu associo. Na verdade, foi a coisa mais transgressora que fiz na minha vida, porque eu sempre fui uma moça muito bem-comportada.

P – Pelo que você fala, tudo te encaminhava para outras carreiras.
R – E para um olhar sobre as coisas bem mais comportado. Sou sempre muito apaixonada. Se estou dando uma aula, vendo meus alunos em pleno processo, é sempre uma coisa muito apaixonante. O Peter Brook diz que é um processo de carne e sangue que se desdobra na sua frente. Não tem como ser de outra forma. Também não tem muito como ser meia-boca. Vou te dizer, sou uma pouco apaixonada demais por tudo. Para mim, é difícil imaginar que alguém possa fazer alguma coisa sem paixão.

"Para mim, é difícil imaginar que alguém possa fazer alguma coisa sem paixão." Foto: Divulgação
“Para mim, é difícil imaginar que alguém possa fazer alguma coisa sem paixão.” (Foto: Divulgação)

P – Você é autora de livros, professora de interpretação na universidade, faz teledramaturgia, radioteatro, é diretora e tem uma sólida formação intelectual. Tudo isso foram contingências na sua vida?
R – Sou muito curiosa e muito novidadeira, no bom sentido e no quanto isso pode atrapalhar de vez em quando. Aparentemente, são muitas coisas, mas todas elas nascem do mesmo fascínio. Fui fazer rádio porque achava fascinante um ator no rádio, como exercício e desafio. Eu dou aula para atores porque quero ver o processo dos atores. Meus orientandos da pós-graduação são atores ou diretores buscando um pouco de reflexão em cima da sua prática. Daí, talvez, sim, ser uma atriz muito curiosa e interessada no processo de criação, naquilo que move um ator para a criação. Embora tenha sempre tentado colocar esse olhar sobre o trabalho dos outros, busquei preservar no meu próprio processo de criação de atriz um olhar um pouco mais livre, tentando manter um pouco de mistério sobre o meu próprio processo.

P- O temor é de que você poderia tornar esse processo muito racional?
R- É, são coisas que eu estou percebendo nesse momento. Embora eu tenha estudado bastante e trabalhe muito com o outro, com outro ator, com o meu próprio trabalho eu fui sendo mais comedida, trazendo para o meu processo aquilo que me desafia mais, que me coloca num estado apropriado para trabalhar. Tem um amigo meu que diz isso, que temos de tentar manter o mistério, e há um mistério concreto que faz com que a gente crie.

P – O mundo dos atores e das atrizes tornou-se um mundo marcado pelo consumo das celebridades. Como você avalia esse fenômeno?
R – Pra mim, a grande questão desse surto de celebridade é que ele não está relacionado só aos atores. É sobre qualquer pessoa colocada numa posição que, por qualquer motivo, se torne alguém de quem eu deva saber a vida, alguém que é um sucesso, seja lá o que for esse sucesso. Essa pessoa pode ser um jogador, um ator, um cantor e pode ser um homem que atira a filha pela janela. Ou pode ser o maníaco do parque. Acho assustador isso porque é uma coisa quase descontrolada. É óbvio que ninguém vai ser ator ou atriz se não gosta da exibição que isso traz, não existe isso. É hipócrita dizer que adora ser atriz se tu não gostas do que vem junto, que é a exibição, a exposição. Agora, se isso ultrapassa aquilo que diz respeito ao porquê tu te tornas famosa ou reconhecível pelas pessoas, ao trabalho que tu fazes. Quando isso ultrapassa o motivo que gerou essa exposição, daí é avassalador.

P – Como as pessoas de outras regiões não conhecem muito a história teatral do Rio Grande do Sul, pergunto sobre isso e também sobre como você se reconhece nesse contexto.
R – Acho que a grande tradição do teatro no Rio Grande do Sul, e mais especificamente de Porto Alegre, é do teatro de grupo. Talvez porque a gente tenha sempre disputado com Belo Horizonte, Salvador, quem era o terceiro lugar… Sempre éramos o terceiro, ou o quarto ou o quinto, mas jamais fomos o primeiro ou o segundo lugar no teatro brasileiro. E sempre enfrentando dificuldades sérias por não ter um mercado de trabalho artístico, como é possível numa grande metrópole. Acredito que o lado favorável disso foi a criação e a manutenção de grupos fortes de teatro em Porto Alegre. Nesse momento, temos um grupo que está fazendo vinte anos, o Stravaganza, e outro que completa trinta anos, o Terreira da Tribo, talvez mais conhecido nacionalmente. Alguns grupos já têm uma idade maior, mas é um movimento como a vida mesmo – alguns nascem, se mantém por algum tempo, desaparecem, outros vêm.

P – Outra questão que também chama atenção no Rio Grande é o pólo cinematográfico que surgiu aí. Você também atuou em filmes e tem condições de falar sobre esse movimento.
R – Tenho uma carreira pequena em cinema, certamente menor do que eu gostaria. Aqui tivemos, iniciando mais ou menos na mesma época em que eu comecei como atriz, há trinta anos, um movimento forte de Super 8, que veio a desembocar em inúmeros cineastas e realizadores. Entre eles, temos a Casa de Cinema de Porto Alegre, que talvez seja a mais reconhecida, mas podemos citar também a Clube Silêncio, que é uma produtora importante e que acabou de fazer um filme com o Beto Brant, o Cão sem Dono. Esse movimento foi tão forte que favoreceu a criação de três cursos de graduação em cinema, todos aqui em torno de Porto Alegre.

P – O surgimento desse pólo de cinema foi graças a subsídios oficiais ou mais ligado à iniciativa privada?
R – O cinema movimenta um capital muito grande, emprega muito gente e as pessoas de cinema tem uma capacidade de organização e de representação muito fortes. Acho que essa união da categoria acima de toda e qualquer pequena querela garantiu ao movimento uma capacidade de produção muito legal e principalmente uma qualidade de produção muito boa. O próprio exemplo de teledramaturgia teve como início a abertura de um horário na programação da televisão em que se começou mostrando os curtas-metragens produzidos no Rio Grande do Sul. Daí a pouco, isso foi crescendo, crescendo, e hoje há dois ou três horários na RBS, tanto da TV aberta como da UHF, com espaço para produções de ficção. É um movimento importante, que vem crescendo, e que acho extremamente revigorante.

P – É nesse espaço que você está fazendo a personagem Carmem, da série Fantasias de Uma Dona de Casa?
R – Sim, isso é uma coisa muito legal porque foi um curta em que eu trabalhei, há uns cinco anos, feito para esse horário, numa produção da Casa de Cinema com a RBS. Agora, em função da repercussão, resolvemos transformar num seriado, que está tendo também um excelente reconhecimento.

P – O Sul sempre teve também uma tradição muito forte no rádio e você tem essa experiência com o radioteatro…
R – O Rio Grande do Sul foi talvez o terceiro pólo de produção radiofônica de ficção até o final dos anos 50. As emissoras chegaram a ter em casting de cem pessoas, com diretores, escritores… Eu comecei a me aproximar disso porque sempre fui muito apaixonada por rádio. Na minha casa, desde pequena, meu pai não entendia a vida sem um rádio ligado. Mas, na verdade, o que me despertou mais foi a possibilidade de ser atriz no rádio. Isso é uma coisa deslumbrante para mim. O trabalho sobre a palavra me encanta e me aproxima muito da literatura também. Penso que o ator tem esta relação com a palavra que antecede o veículo, que diz respeito à imaginação que ela suscita.

“Tenho uma carreira pequena em cinema, certamente menor do que eu gostaria.”

P – É interessante que tenha sobrevivido esse radioteatro nos tempos modernos, não?
R – Existem experiências em todo o Brasil. É claro que tem gente que trabalha sobre aquela estética mais melodramática. O que procurávamos aqui era tentar encontrar o que seria um radioteatro contemporâneo.

"O ator não precisa mais estar submisso a todas as vontades e desejos do diretor, sem questioná-lo, porque ele também é um criador." Foto: Divulgação
“O ator não precisa mais estar submisso a todas as vontades e desejos do diretor, sem questioná-lo, porque ele também é um criador.” (Foto: Divulgação)

P – Gostaria de saber a sua avaliação sobre a história retratada no filme O Crime da Atriz, em que a personagem tenta mudar a orientação do diretor em busca de um espaço de expressão mais generoso. Você já viveu alguma coisa parecida?
R – O filme suscitou várias questões para mim. A primeira delas é que um ator compenetrado, um ator bem-formado, jamais faria isso, jamais ocuparia o espaço dessa forma tão avassaladora. Ao mesmo tempo, me parece que tem um pouco da mudança do próprio teatro, da própria tradição da interpretação, que é aquele círculo traçado no chão. Ou seja, ali só pode estar a diva, ninguém atua ali. Dizem que o Procópio Ferreira era assim, ele tinha um espaço no centro do palco, e que, dois dias ou um dia antes da estréia, ele ia e fazia o que queria. Os outros ensaiavam em volta daquele círculo. E essa outra mulher que tem a ousadia, o que acho maravilhoso, de criar uma história para uma personagem que é quase uma figurante, a história do marido… Sim, ela é uma ‘criminosa’, ocupa um espaço que não seria dela, mas o transforma em seu. Parece que está embutida ali essa transformação também na arte da interpretação. Não basta mais ser um elemento decorativo, que faz caras e bocas, e ais e uis, mas é necessário uma outra composição, realmente um trabalho de criação mais complexo.

P – É como se ela estivesse em busca de uma alma.
R – Sim, e a traz para cena. Outra coisa que acho importante é que vivemos um momento importante para os atores. O ator não precisa mais estar submisso a todas as vontades e desejos do diretor, sem questioná-lo, porque ele é também um criador. No caso do filme, na verdade, o diretor também não faz muito mais do que desenhar o círculo no chão e decidir quem entra em que hora, quem sai em que hora, de que lado entra, por que lado sai. Claro, se a gente pensar num encenador que concebe o mundo através do espetáculo, concebe uma forma de fazer teatro, enfim, é um pouco diferente. Mas penso que o ator é sempre um criador, independente de trabalhar num ou noutro processo de trabalho. Tem diretores que chegam no primeiro dia de ensaio e já sabem toda a marcação que vai fazer, do início ao fim. E outros que constroem o trabalho de uma forma mais coletiva. Não importa, desde que o ator tenha consciência de seu papel de criador em cada processo.

P – É como se alguns diretores tratassem os atores apenas como bonecos?
R- De qualquer forma, isso é impossível porque o ator é outra pessoa. E essa outra pessoa, por mais que siga à risca todo esse desenho de marcação, vai fazer isso de outra forma. Então, esse espaço da criação existirá sempre.

P – E essa pessoa tem o sangue ali…
R – Passa pelo filtro do corpo dela, é no corpo dela que se desenha aquilo. Existem as experiências mais contemporâneas de processos colaborativos, de trabalhos em que o diretor provoca os atores, faz com que eles tragam, com que eles produzam, com que eles criem através de imagens, sons, e em cima desse material é que ele vai constituindo o espetáculo. Mas sempre acho que essa relação ator e diretor pode ser muito rica desde que todo mundo conheça bem o seu papel na estrutura daquele espetáculo, ou daquele grupo, e possa viver bem com isso.

P – Na conversa com as atrizes, é possível perceber, às vezes, a angústia da criação e a frustração de nem sempre conseguirem colocar o seu lado criativo em cena.
R – Eu trabalhei muito tempo em grupo, muito tempo com uma diretora. A gente já tinha tanta cumplicidade entre alguns atores e dos atores com a direção que, na verdade, já concebia um pouco junto as coisas. Esse trabalho foi uma grande escola para mim, fundamental. Sempre digo que foi onde aprendi a ser artista em primeiro lugar, mais do que ser atriz. E também a compreender o mundo, saber como as coisas se movimentam, em que contexto tu estás fazendo as coisas.

P – Como atriz, você trabalha nessas linguagens diferentes, com cinema, teatro, televisão. Você se identifica mais com alguma dessas linguagens ou vê em cada uma delas um exercício válido?
R – Minha formação toda é de atriz de teatro. Tem uma coisa que é do teatro, que é praticamente inegociável, digamos assim, que é o fato de acontecer agora, no presente. Então, esse se atirar sem rede é só do teatro. E é tu quem resolve, não tem câmara, não tem microfone, o que acontecer ali, o diretor não está ali para resolver, tu tens que resolver…

P – Você, seu corpo, sua voz…
R – É ali, com o público respirando junto. Acho que essa experiência é impagável, e ela ensina e revigora. Mas também acho que as outras linguagens te trazem um aprendizado muito grande. Ator quer trabalhar, quer exercitar, fazer seu ofício, então, acho muito rico também. Estou ensaiando um trabalho que se chama Babel Genet, sobre a vida e a obra de Jean Genet. Saí direto das filmagens do seriado para a televisão, para os ensaios gerais da peça. A minha impressão é que um trabalho aquecia o outro. Na peça são seis personagens principais e um coro de vinte pessoas. É um espetáculo bem estranho, bem diferente, com uma narrativa não convencional. O projeto ganhou um dos prêmios Funarte.

P – Vocês vão excursionar pelo Brasil?
R – A idéia é um pouco essa. Quando a gente monta alguma coisa tem sempre em mente poder andar com o espetáculo. Até porque eu acho que isso é uma coisa atávica no ator, que é esse mambembe, saltimbanco. As pessoas não podem ver um carroção pela frente que já acham que é para pegar a caixinha de maquiagem e ir embora atrás.

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Noites Circenses Regina Horta Duarte Editora da UNICAMP

P – Um livro chamado Noites Circenses, de uma historiadora de Minas, a Regina Horta Duarte, fala muito do nomadismo dos atores e de quanto isso é transgressor também, pela própria percepção de que o ator é um ser diferente.
R – Viajar com o espetáculo é uma coisa absoluta, assim. Significa colocar o espetáculo e as pessoas numa outra situação. Por mais profissional que seja, por mais que tudo esteja previamente planejado e organizado, dificilmente vai ser tudo exatinho, certinho.

P – Por fim, perguntaria, dentro de tudo isso que conversamos, como você vislumbra o processo de criação e a dramaturgia, tanto no Sul como a nível nacional. O que você espera, Mirna?
R – A dramaturgia sempre foi um pouco um calo, uma pedra no nosso sapato. É muito complicado desenvolver dramaturgia aqui no Brasil. A gente demorou a criar essa tradição Mas vejo alguns movimentos interessantes, em São Paulo, mesmo aqui tem grupos, gente procurando, não é? Inclusive, fazemos agora na universidade um encontro, às segundas-feiras, com o objetivo fazer leituras de textos contemporâneos brasileiros. Temos conseguido alguns textos bem atuais, escritos ontem. Acho cativante isso. É um reencontro com o idioma também, dizer as coisas por palavras criadas por nós mesmos, não traduzidas. Deus me livre alguém achar que eu não queira fazer os autores de fora daqui, não é isso. Mas é uma experiência muito interessante. Se a gente puder, cada vez mais, em termos municipais, estaduais e federais, ter a compreensão de que só lei de incentivo não significa uma política cultural, já seria uma grande coisa. A responsabilidade pela produção cultural é maior do que simplesmente a lei de incentivo. Como atriz, quero continuar a ser desafiada, ter a sensação de que não está tudo pronto. Pelo contrário, essa sensação de que a maturidade pode ser justamente a oportunidade do novo. É uma percepção que estou achando muito plena.

 

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