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Marisa Orth

Uma mistura de talento e exuberância

Para ela, representar é uma missão Foto: Bruno Prada
Para ela, representar é uma missão (Foto: Bruno Prada)

O nome completo é Marisa Domingos Orth, uma combinação do alemão Orth e do italiano Domenica, transformado em Domingos no pós-guerra. Ou seja, uma “mistura nazi-fascista”, como a atriz Marisa Orth gosta de brincar ao mencionar sua origem. Na verdade, o lado italiano – calabrês, precisamente – é muito mais predominante em sua figura exuberante e loquaz.

A conversa com essa atriz que ostenta um sucesso incontestável na carreira é permeada por inquietações artísticas e pessoais. Sua trajetória inclui personagens íntimos do público de televisão, como a Nicinha, de Rainha da Sucata, e a Magda, do humorístico Sai de Baixo, assim como outras tantas experiências no teatro e no cinema. Sem esquecer sua performance em espetáculos musicais, uma de suas paixões recorrentes.

Marisa considera sua profissão profundamente democrática e vê o teatro como um ambiente inigualável em termos de exercício da democracia. “Uma escola linda”, define. “Gosto muito de momentos em que as pessoas criam outras leis, em que se igualam, em que você apascenta as diferenças e encontra outra maneira de estar com as pessoas”, explica, na conversa que se estendeu por mais de uma hora, no Rio de Janeiro.

“Ator é louco para saber de tudo”, diverte-se Marisa, ao observar que os atores no Brasil dão palpites sobre qualquer assunto – “criação de palmito, física nuclear…” Ela também fala abertamente sobre todas as coisas, desde a convicção de que nasceu atriz às restrições que a desigualdade social impõe à cultura brasileira. A entrevista que concedeu pode comprovar que, pelo menos no seu caso, a atriz tem muito a dizer. (Beth Cataldo)

“Eu sabia que era atriz. Nasci assim. Quem nasce atriz nasce atriz.”

Pergunta – No passado não muito recente, as atrizes eram estigmatizadas e cercadas de preconceitos. Para você, o que significa ser atriz hoje?
Resposta – Eu acho que continua o estigma, de uma certa maneira. Tem a coisa de ser célebre. Vejo muito o ator reclamando disso – ‘ah, pinta em um mês e já, já está na novela com você.´ Mas temos que entender o público como se fosse um marido. Deixa ele ter as amantes, a gente é o amor verdadeiro. Quando faltar, ele vai chamar por nós, ele gosta da gente. Tem que ter paciência, é uma coisa bem feminina.

P – Os atores e atrizes que ficam também não são tantos, não?
R – É claro que cada um tem seu caminho. Tem pessoas que explodem em segundos e ficam – gente que queria ser artista e, mais do que isso, tinha talento, humildade. É uma profissão extremamente democrática.

P – E o estigma?
R – As coisas estigmatizam. Uma que as pessoas acham que a gente é falsa, é mais ou menos voz corrente. Se você chora, está mentindo. Você escuta isso de pretendente, de namorado. Eu acho o contrário. Ator é um bicho tão verdadeiro que faz até mentira parecer verdade. Nós costumamos ser mais sensíveis do que o normal. É paradoxal pra caramba. A gente é super sensível, porém, lida com as emoções. E é uma mentira dizer que o nosso trabalho é cardíaco, o nosso trabalho é cerebral. Os atores que eu admiro, quando converso com eles, é cabeça. Na hora da desgraça, vejo o engenheiro surtado embaixo do canto, o advogado dando com a cabeça na parede e o ator encomendando o caixão.

P – Você acha que representar é um dom?
R – Acho que é uma missão. Ou é uma coisa de outra encarnação ou é uma neurose muito precocemente adquirida, o que pode ser também.

P – É muito comum ouvir das atrizes que desde crianças sentiam esse impulso de representar.
R – Eu sabia que era atriz. Nasci assim. Quem nasce atriz nasce atriz. Quando as minhas amigas falavam que não queriam ser atrizes, isso criança, eu achava que elas estavam mentindo. Ah, veterinária… podendo ser atriz, quer ser veterinária?! Eu não conseguia acreditar.

P – E na família foi difícil?
R – Meus pais são muito cultos, extremamente cultos. Eles têm prazer pela cultura. Eu me lembro da cara deles de prazer chegando depois de uma peça boa. E aí eles jogavam os programas no sofá e eu pegava para ler. Gostavam muito, e gostam até hoje, de teatro, artes, literatura. Eles se conheceram trocando livros e tal. Não tive essa sorte. Mas vamos dizer que eles gentilmente me obrigaram a fazer uma faculdade. Eu morava na casa deles, o começo de carreira de atriz é bem difícil.

P – Você atuou como atriz desde o início?
R – Comecei com dezoito anos, no primeiro ano da Escola de Arte Dramática. Meus pais tinham dinheiro, eu não precisava trabalhar. Mas eles falaram que se eu quisesse continuar morando com eles deveria me formar. Então, eu fazia Escola de Arte Dramática à noite e Psicologia de dia. No terceiro ano da faculdade, eu já estava fazendo peça, ganhando prêmio, tinha uma banda e disse que ia trancar o curso. Foi quando eles disseram, olha, se você trancar, você sai. Foi a única vez que recebi uma pressão. Minha mãe só queria que eu fizesse a Escola de Arte Dramática – se eu ia ser atriz, tinha que ser na EAD. Aí, eu entrei. Mas tinha essa pressão. Em geral, era um cuidado. Quer dizer, se for uma loucura, se for um delírio, se não der certo, se ela não for aceita, se ela não for amada… Porque tem muito isso, não é? Mas essa foi a única pressão.

P – Não foi nada tão dramático.
R – Não, perto do que escuto por aí sobre o começo de vida das outras pessoas, até que foi muito bom. Na verdade, é muito louco porque eu fui muito patricinha. Não, patricinha não, era moderna e tudo… Mas eu ganhei carro do meu pai quando fiz dezoito anos. Morei numa bela casa, tinha empregado, tinha motorista. Às vezes, vejo garotas novas, lindas, e você fala ´ah, garotinha, chegou agora`. Vai ver, a menina era modelo desde os doze, foi morar em Tóquio aos quatorze, sustentou a mãe! Eu não sei o que é isso. Estava falando que a profissão é democrática, então, eu parei de criticar as moças. Tem uma que a mãe era puta, entende? São novinhas, bonitinhas, mas vai pegar a história delas. Uma vez eu estava uma roda de garotas super jovens, super lindas, falando da vida delas, e fiquei bem quieta.

“O pessoal acha que é muito divertido fazer cena de sexo e é um horror. Uma semana antes, a gente fica desesperada porque vai ter cena de sexo.”

P – Mas você falava sobre o estigma das atrizes…
R – Tem o estigma de que a atriz é falsa, tem o estigma de que a atriz é fácil, porque ainda pega o negócio de beijar na boca de qualquer um, é incrível. Fico chocada, mas tem. O pessoal acha que é muito divertido fazer cena de sexo e é um horror. Uma semana antes, a gente fica desesperada porque vai ter a cena de sexo. E atire a primeira pedra a atriz que faz isso muito à vontade porque é dificílimo. `Ah, mas se você tiver tesão pelo…´ piorou! Graças a Deus, por obra do Divino, eu nunca estive em situações assim. Porque se você tem algum interesse na pessoa, aí é mais constrangedor, é horrível. A gente tem essa separação do corpo, por obrigação. Não que a gente seja devassa, não é nada disso. Dá muito bem para você beijar e não estar beijando. Assim como existe a situação na vida em que você está sentada perto da pessoa, sem nem tocar, e está rolando um clima absurdo! Pelo amor de Deus., é incrível que as pessoas não acreditem nisso. Então, o estigma da falsa, o estigma da fácil e a fama. A fama é outro estigma.

P – O que seria?
R – É a solidão, é a solidão. Um dia, eu ainda vou fazer um lar ‘Michael Jackson´ para abrigar famosos em desespero.

P – Isso é porque os horários são loucos, o ritmo de vida é outro?
R- É porque você está em destaque, fama. Fama é diferente. E destaque, o nome já diz, é separada. Destaque aqui, é separada. Não tem idéia se as pessoas estão correndo atrás de você para te bater ou pra te beijar. Só sabe que as pessoas estão de um lado e você está de outro.

P – É uma onda que pega em algum momento?
R – Já teve final de semana em que eu fazia peça de quinta a domingo e show de sexta a domingo. Umas cinco mil pessoas tinham me visto naquele final de semana. Segunda-feira de manhã, você fala, vou escovar o dente pra quê? Não tem ninguém olhando… A pressão de fora para dentro é muito maior hoje do que era no meu tempo, quando ainda contava mais de dentro pra fora. Eu tenho vinte e cinco anos de carreira e não sei como seria começar hoje. É muito mais forte a pressão midiática hoje. Tem muito mais paparazzi, muito mais matéria, uma indústria que fala sobre a vida do ator. Acho que a gente iria ficar muito insegura, porque atriz é muito insegura.

P – São personalidades que se tornam mais complexas por causa da profissão, não? Para lidar com isso tem que ter muito equilíbrio ou muito desequilíbrio?
R – Tem que ter muita humildade. Assim como Bill Gates veio ao mundo para provar que é generoso, o ator, o famoso, tem que ser humilde. A dona da quitanda pode morrer achando que é Cleópatra, eu, não. Vou para um hospício se achar. Outra coisa ainda sobre o estigma da atriz são os horários. A gente trabalha de noite, gosta de dormir tarde e precisa. Trabalha para os outros se divertirem. A gente tem folga na segunda e terça, quer farrear e beber na segunda-feira e não tem ninguém. Aí o povo vai viajar no final de semana e você vê aqueles carros indo…. É o dia do serviço para nós.

P- Como parte de uma geração de atrizes ligadas à comédia, você se considera herdeira da linhagem que vem com o teatro de revista, com as comédias de costume cariocas?
R – Eu me formei uma atriz dramática, absolutamente dramática. Era famosa na EAD porque fazia tragédia. A primeira peça que eu fiz foi Fausto, de Goethe, a segunda foi um apanhado de cenas de Nélson Rodrigues. E eu sempre fazia as mães, nunca fiz as Glorinhas, nunca fiz as Julietas. Não era uma questão de idade. Aí, fiz a peça Fica Comigo esta Noite, que era uma tragicomédia, e que refiz, vinte anos depois. A gente pegou uma geração que é o nascimento do besteirol – Asdrúbal, Mauro Rasi, Vicente Pereira, em São Paulo, Naum Alves de Souza…

P – O Asdrúbal é um pouco antes, não?
R- Pouquinho. Tudo faz parte da mesma leva. Foi uma revolução que a gente está perdendo, está voltando para trás. Descobriu-se que era possível falar de temas sérios numa comédia. Isso foi uma enorme liberdade estilística. Saiu do ‘teatrão” – ou vamos fazer uma tragédia ou vamos fazer uma comédia. Você podia estar vendo uma comédia e, de repente, seu peito apertar e ter vontade de chorar. Como na vida. Isso é que é bacana. Então, sinto que nos anos 80 havia mais liberdade de estilo do que temos hoje. A gente está voltando de novo para essa coisa da comédia ou tragédia. Tive a chance de fazer a peça Fica Comigo esta Noite nos anos 80 e em 2007, 2008. Mas é comédia ou é tragédia, as pessoas vêm me perguntar. Em 80, não tinha essa pergunta.

P – Esses compartimentos afetam a forma de representar?
R – De alguma maneira, a minha geração tem muitas boas atrizes da minha idade. Deu uma leva que é fantástica! Débora Bloch, Beth Coelho, Denise Fraga, Fernanda Torres, Cláudia Raia, Giulia Gam, a Julinha Lemmertz, a Cortez, a Drica Moraes, a Andréa Beltrão… Tem altas atrizes, uma melhor do que a outra. E todas fazem comédia e fazem tragédia. Eu me considero uma dessas também. Faço tragédia muito bem. Só que Deus quis que eu fizesse muita comédia. Fui fazer a novela do Sílvio de Abreu, Rainha da Sucata, que era a primeira aposta dele numa novela de humor no horário das oito. Descobri na televisão que era engraçada.

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“De repente, a minha vida mudou, fui ficando alguém que as pessoas olham e dizem ´mas só a sua cara, a gente olha e morre de rir…` De repente.” (Foto: Márcio de Souza/TV Globo)

P – Então, foi com Nicinha, a sua personagem na novela?
R – Nicinha. Eu era engraçada na EAD quando fazia os exercícios de voz, exercício de sotaque. Mas humor é o que eu fazia para as minhas primas darem risada, que eu fazia lá em casa. Jamais imaginei que ia viver disso. De repente, a minha vida mudou, fui ficando alguém que as pessoas olham e dizem ‘mas só a sua cara, a gente olha e morre de rir…´ De repente. E eu fui criada por esquerdistas, tive uma formação muito de esquerda. Então, eu sou a praticante do ópio do povo. Eu virei marionete do sistema, fantoche da ditadura.

P- É uma boa oportunidade para perguntar sobre o teatro de inspiração política dos anos 60 e 70.
R – Eu fui ao teatro TUCA com a minha mãe e ela falou ‘aqui eu vi Morte e Vida Severina, eu quero que você faça Morte e Vida Severina´. Eu ouvi isso.

P – Você acha que esse teatro é algo datado?
R – Acho. É doloroso porque eu tive uma formação para ser a séria, a cabeça, a paulista, a cult. Eu virei pop, estrondosamente pop. Daí, aprendi a fazer comédia com o povo do Rio – e é subúrbio do Rio. Não tem ninguém mais engraçado. O povo do subúrbio do Rio bota o resto no bolso. Denise Fraga é de Lins de Vasconcelos, Adriana Esteves é do Meier, Miguel Falabella é da Ilha do Governador, Cláudia Jimenez é do Rio Comprido…

P – E você, paulista quatrocentona.
R- Quatrocentona não, nova rica. Neta de imigrantes, nova rica. E eu fiz a primeira novela  – ai, ai, meu Deus – me sentindo já traindo os meus amigos. As pessoas de São Paulo torcendo o nariz para mim, eu estourada de sucesso na rua! Fiz uma peça logo em seguida, com o José Wilker, Miguel Falabella, Mônica Torres e Luis Salem, chamada Algemas do Ódio, que era um comediaço. Fomos pelo Brasil e eu sofria, sofria, porque estava traindo os meus ideais … e Fausto, de Goethe, e as peças alemãs que eu tinha guardado para fazer? Enquanto isso, eu estava fazendo uma banda, a Luni, compondo coisas totalmente pop, já de lingerie, não sei o quê. Mas ainda era mais cabeça. Com a Vexame, fiz uma banda de música brega. Era música brega mesmo. E não era MPB, era MBPBB – Música Bem Popular Bem Brasileira!

P- Você transgrediu muito, não?
R- Muito, porque eu saí do cult para o pop. Os meus pais até hoje ficam em dúvida. Porque a esquerda brasileira, eu vi. Tenho sítio em Ibiúna, eu vi. O Serra tem casa lá, o Fernando Henrique, o Gregório, o Lemos, todos. Mas vi também os Diniz, os Bresser Pereira. Eles eram mais ou menos do mesmo grupo. Fui vendo a geração dos meus pais, lendo muito Pasquim e declamando. A gente fazia (cantarola) ‘hoje você é quem manda…” O showzinho que a gente fazia em Ibiúna era mímica dessa música. Eles foram ficando ricos, subindo na vida. E aí eu via léguas de ardósia, as casas aumentando a ardósia, aumentando o tijolinho à vista e as samambaias. Só depois que eu entrei na carreira é que eu comecei a ver veludo, som de madeira, cristal, achei tão bacana. Achei bom, porque o rico de esquerda é muito culpado.

P- Foi esse tipo de conflito que apareceu quando você fazia a peça Algemas do Ódio?
R – Eu sofria muito, um drama, um problema de consciência. Até que um dia o Miguel (Falabella) virou para mim e falou ‘vem cá, você quer que a gente instale umas canaletas, que comece a nevar para que você se sinta num filme do Bergman quando entrar em cena?´ O Miguel foi um grande mestre para mim. E com os cariocas eu aprendi o ‘joga fora´.  Comédia a gente joga fora. Diz o texto, lá, lá, e joga fora. Coisa que carioca sabe fazer. Eu descobri que graça é uma coisa que se acha, a pessoa acha graça. Se você demonstra, ela não acha. Fui aprendendo. Peguei um cearense também, Tom Cavalcanti – cearense também é bom de comédia. Aí, a comédia foi entrando na minha vida, eu descobri que era boa nisso.

“Comédia não se aprende. Você conhece alguém da sua família que não sabe contar piada e começou a contar bem piada?”

P- Você tem o famoso tempo da comédia. Aliás, como você define esse tempo?
R – Um ritmo. É uma coisa musical. É muito exato. Por isso é que se costuma dizer que comédia é mais difícil do que drama. E porque não se aprende. Você conhece alguém da sua família que não sabe contar piada e começou a contar bem piada?

P – Não, mas mesmo assim insiste em contar.
R- Exatamente, toda família tem uns dois, três. Lá vem de novo…

P – O seu lado musical te ajudou como atriz? Ajuda ainda?
R – Sim, ajuda muito. Eu acho que não existe bom ator sem ouvido musical.

P – Por causa do ritmo?
R- E do ouvido. Assim como pela nota musical da frase. Porque um cara que não tem ouvido musical, quando o diretor fala ‘mais doce´, ele abaixa o volume. Não, ‘mais forte´, ele aumenta o volume. Mas a seqüência de notas da frase ele não é capaz de mudar.

P – No teatro, é possível perceber bem o grande alcance da sua voz, mas muitas atrizes não tem essa capacidade, não?
R – Mas são boas atrizes assim mesmo. Nara Leão também não tinha uma ‘vozona´.  Tem que ter ouvido, mais do que voz – sensibilidade auditiva. Quando você ouve duas atrizes francesas falando, às vezes têm uma notinha. É ouvido musical.

P – E as diferenças de atuação no teatro, na TV e no cinema? Muitas atrizes se queixam da ditadura do ‘menos nas telas, dessa tendência de minimizar a interpretação.
R – Eu acho que é tudo meio igual. A gente tem que imitar outra pessoa. Isso aí é igual. Os atores jovens dizem, às vezes, que querem ser de televisão e não de teatro. Eu acho que já está errado. Ser ator é ser ator. É imitar outra pessoa. É viajar e fazer todo mundo acreditar que você é outro. Aí, você tem a técnica, diminui o volume, diminui o gesto, diminui o tom e cola no diretor. Cinema é a arte do diretor. Quando você vai assistir a um filme, assiste como um espectador, reza para o cara ter te dirigido bem. Você grava o fim, depois o meio, depois o começo, depois só aqueles dois segundos em que você fica três dias para fazer, depois vinte minutos em meia hora.

P – Você não tem domínio algum, não é?
R- Você tem muito pouco.

“Qualquer trabalho em televisão, por melhor que seja, te piora como atriz, porque você não ensaia.”

P – E o teatro é a arte do ator, como se costuma dizer?
R – É. Teatro é delícia. Primeiro, porque você estuda, pode repetir. É como um quadro, você ensaia dois meses. Aqui eu vou fazer esse gesto, aqui eu vou fazer essa boca, aqui não sei o quê lá. Você apresenta um trabalho mais bem-acabado, ensaiou dois meses aquilo, três, às vezes. Eu sempre digo que qualquer peça que você faça, por pior que seja, sai melhor atriz. Você aprende melhor, porque você melhora ao ensaiar. E qualquer trabalho em televisão, por melhor que seja, te piora como atriz, porque você não ensaia.

P – Você acaba se repetindo?
R – Acaba criando uma casca grossa, vai no bolso do colete. Vai fechando os caminhos que você abriu, aquelas veredas vão se cobrindo de mato. Aquela estrada que você ….ih, o mato cobriu, não sei mais chegar lá. Você só fica no centrão. Você vai no seu fácil.

P – O teatro é o território para se arriscar mais?
R – Teatro é a pós-graduação do ator. É onde você estuda, onde você melhora..

P – O filme O Crime da Atriz mostra pequenos truques de interpretação e os improvisos da personagem para obter um papel mais amplo. Isso existe na prática?
R – Existe. Mas eu sou tão pretensiosa ou tão ingênua – outro paradoxo. Eu acho que tenho de me dirigir ao público. Meu inimigo ou amigo está na minha frente. Eu não consigo perder o meu tempo achando que o do lado… Às vezes, não percebo que estão tentando me derrubar. Mas não sou boa para falar desse assunto porque eu não noto.

P – E a improvisação?
R – Improviso pouco, muito pouco. Sou operária-padrão. Acho um barato imaginar que, ao escrever, aquele cara escutou uma música no ouvido. E eu quero lembrar que música foi essa. Se ele colocou as palavras nessa seqüência, ouviu isso de algum jeito e eu quero tentar achar o jeito que ele ouviu. Por isso, às vezes é muito difícil você fazer teatro traduzido. O texto perde a música que o autor ouviu. Tem a música que o tradutor ouviu, mas ele não é um dramaturgo.

P – Faltam textos na dramaturgia brasileira? É possível estimular essa produção?
R – Faltam, sim. Às vezes, me perguntam o que eu gostaria que o governo fizesse pelo teatro. Não matando o público de fome, já está bom. Dando escola até a oitava série, já me ajuda. Outro dia, eu estava vendo um quadro do Monty Python na televisão, era um jogo de futebol de chorar de rir, de São Tomás de Aquino contra os filósofos alemães. Hilário. Mas me deu vontade de chorar. Quando é que no Brasil vou poder fazer um quadro assim? A partir da cultura, você tem mais coisa para falar sobre! Senão, você vai ter que falar do que não se aprende na escola. E o que não se aprende na escola? Sexo, preconceitos. Você não precisa entrar na escola para aprender que a gostosa é burra, que o veado é quá,quá, que o velho é matusalém. E fica repetindo isso. Isso é falta de escola. A gente se ressente muito. Ou não tem o cara que escreve ou tem o cara que escreve mas não tem quem entenda.

P- Ou seja, a questão social está sempre presente.
R – Não dá para levar esse papo sem falar da divisão de classe, não dá. Nos Estados Unidos, você tem um Woody Allen muito satisfeito, que faz milhões de filmes. Não é um blockbuster, mas ele vive muito bem porque tem o público dele. Lá existe segmentação de mercado, aqui você não tem. É a injustiça da distribuição de renda. Ou você fala para doze que estudam ou fala para doze milhões que não estudam.

P – Você não acha que isso está mudando, que o País caminha para se consolidar como uma democracia de massa?
R- O problema é que está comido pela falta de cultura. A pobreza nunca vem sozinha, ela traz junto a ignorância, traz junto a doença, a violência, a corrupção, a falta de ética.

P – A cultura não pode ser um grande caminho para mudar essa situação?
R- Pode, é o único. Lembra numa família bem pobrinha, quando tem uma tia solteirona que traz uns fascículos do ramo de artes, gênios da pintura? Ou um tio veado que por acaso leva os sobrinhos duas vezes a uma exposição? Isso é um raio de luz que entra numa família. É a possibilidade de salvação, entende?

P- E se aposta muito pouco nisso, não?
R – É aquela música do Arnaldo, a gente não quer só comida. Acho que o ser humano precisa viajar, precisa alterar os seus estados de consciência. E isso o traficante, o pastor, sacam muito antes do Ministério da Cultura.

"Faço música para me dar um frio na barriga de novo. Estou sentindo falta de um frio na barriga. Arriscar, afinar o sangue." Foto: Selma Morente
“Faço música para me dar um frio na barriga de novo. Estou sentindo falta de um frio na barriga. Arriscar, afinar o sangue.” (Foto: Selma Morente)

P – Na sua trajetória como atriz, quais são as personagens prediletas?
R – Adoro essa mulher que fiz agora no teatro em Fica Comigo esta Noite. A personagem não tem nome, chama-se Ela. Gosto muito da Nicinha e da Magda. Também gosto muito da Maralu Menezes, minha personagem na banda Vexame. Ela anda sozinha, nunca tive um texto decorado, tem vida própria. Fiz dezoito anos de show com a Maralu. Eu brinco que ela é tudo que eu queria ser. Ela é um monstro e tem um coração de ouro. Como esses que a gente vê no Brasil. Ela fez de tudo para subir na carreira, traficou criança, é assim com os homens do poder. Na última vez, ela tinha arranjado uma grade na TV Senado, estava amicíssima do baixo clero. Foi pega porque estava vendendo churros superfaturados, ela só botava recheio nas pontas, não botava recheio no meio, ali, no Congresso. Ela era amigona do Valdomiro Diniz, era assim com o Valdomiro. Ela gostava muito de capiroska, um monstro. Mas um coração bonito, uma pessoa boa. No Brasil tem muita gente assim. Vendeu as filhas da empregada, é verdade, mas é uma boa pessoa.

P- São todas personagens ligadas à comédia…
R – Agora me lembro de completar sua pergunta lá atrás. Eu parei um pouco de ter preconceito com a comédia quando vi que a linhagem dos comediantes no Brasil é das mais nobres. Já me compararam à Dulcina de Moraes e eu fico numa alegria enorme. Não vou jogar fora, eu adoro e acho bom. Vou achar ruim que o povo me ame?

P – Você sente isso nas ruas?
R – Sinto muito, um tesão. Sinto que eu levo muita alegria para as pessoas. O budismo também me ajudou porque no budismo fazer rir é mais meritório, em termos de carma, do que a caridade. Eles têm em alta conta o humor. Por isso eles são tão risonhos. Eles dão muito valor para a risada, para a alegria.

P – A Denise Fraga disse que você, assim como ela, mais a Andréa Beltrão, a Débora Bloch e outras da mesma geração podem ser consideradas filhas de Marília Pêra. Você acha isso também?
R – Sim, totalmente, totalmente. Eu via a Regina Duarte e falava, hum, não é pra mim porque aquela cara eu não tenho. Já começa pela coisa da beleza, que a Marília não é uma beleza padrão. Ela tem uma cara estranha, característica. Eu via a Renata Sorrah. e falava também não é. Via a Dina Sfat, aquela beleza, também não, a Eva Wilma, outra bonitona… Aí vem a Marília, que tinha aquela cara estranha, que fazia comédia, eu falei, ah, então, dá. Eu posso existir. Ela legitimou a minha existência. Acho ainda hoje que a Marília está entre as três melhores atrizes do mundo.

P- E essa questão da expectativa de ser chamada para um papel? Como é para uma atriz ter que esperar ser escolhida para um papel? É muito angustiante?
P – O difícil da nossa profissão são as bifurcações. E Murphy, que é nosso padroeiro. Só que a gente tem muita sorte. Nossa vida é muito boa, antes de mais nada. Eu tenho um grande orgulho de nunca ter pisado num escritório. Mas quando não chamam, ninguém chama. E quando um chama, são três que chamam. E aí bifurca. Como é que eu vou saber se pego essa peça ou esse filme, essa novela… e é tudo ao mesmo tempo. E você está se lembrando que no ano passado ficou no desespero achando que tinham te esquecido. Aí, você pega duas coisas, três coisas. Então, a vida de atriz é oscilar entre reclamar que está trabalhando muito e, depois de quinze dias sem trabalhar, reclamar que te esqueceram, que você está fora de moda. A gente obedece a uma espécie de bolsa de sucesso, que não se explica. Corre paralelo, é outra bolsa. Tem mais a ver com biorritmo, astrologia. Por isso é que, não raro, as atrizes e atores são muito místicos, porque a gente precisa dar um jeito de compreender, antecipar o futuro. É preciso ver se aquela escolha que fizer agora vai ser boa adiante.

P – É possível perceber aquele que administrou a carreira, que fez as melhores escolhas e o que não fez?
R- Aí é que você vê que são vários tipos de talento. Tem talento e vocação. Depois de um certo tempo, eu achava que era só fazer os papéis bem pra caramba e estava tudo certo. Mas, a partir de uma certa idade, para qualquer artista, o talento é você juntar sua vida pessoal com a sua vida artística. Existe casamento. Frank Sinatra é mesmo a melhor voz ou teve a melhor esposa? Será que não morreram outras melhores vozes estouradas no poste ou de alcoolismo? Antes, eu achava que era só talento. Também achava que, se você fosse boa atriz, tinha que fazer qualquer papel e faria bem. Não, tem uma vida paralela que começa a correr na sua vida que são os papéis que caem na sua mão. Isso é uma coisa meio sincrônica, é uma coisa mística. Eu, que fui criada a vida inteira para ser inteligente e achei que a inteligência era o maior trunfo para alguém ser amado, fui celebrizada como a Magda – uma ameba, uma mulher burríssima. E até hoje sou a quinta pessoa mais vendida na Playboy. Na minha frente, só tem a Scheila, a Feiticeira, a Tiazinha e a Adriana Galisteu. Quinto lugar até hoje! Você acredita que isso aconteceu comigo?

P – A Magda…
R- Foi um aprendizado para mim a Magda, foi bonito demais.

P- Você temeu ficar marcada?
R – Eu temi e fiquei. Agora, tudo que eu queria era fazer sucesso. Atire a primeira pedra o ator que diz que não quer fazer sucesso. Ao mesmo tempo, é uma coisa ruim porque aí você tem que fazer mais.

“Se for atriz de verdade, é generosa. É difícil uma atriz mesquinha. E são mulheres inteligentes.”

P – É o medo de se repetir e de ficar uma atriz de um papel só?
R – A gente quer é fazer vários papéis, viver várias vidas. A gente é boa nisso, por isso é atriz. Então, tem que aprender a dizer não. Às vezes, tem que abrir mão, sim.

P – E o fascínio que as atrizes exercem? É por tudo isso que você falou?
R – Eu acho que se for atriz de verdade é generosa. É difícil uma atriz mesquinha. Tem uma generosidade – eu me arriscaria a dizer isso só. E são mulheres inteligentes.

P- Qual o segredo dessa vitalidade?
R- Porque é inerente, é orgânico. Tem até em tribo indígena, aliás… Um documentário que a Letícia Sabatella está fazendo com o Gringo, na tribo krahô, tem uma figura muito importante que é o palhaço. Eles descobriram isso, é super legal. Não é o pajé, não é o chefe, é o palhaço. Ele educa as crianças e dissolve os conflitos. Ele faz rir. É o teatro.

P- Você se sente confortável em viver sob holofotes?
R- Eu me sinto extremamente confortável, extremamente confortável. Quando você está sob holofotes, está tudo organizado. Quem está olhando está lá, sentado, numa mesma direção. Então, não tem ninguém nas suas costas te olhando, você não tem que se preocupar com a sua bunda. Dá uma insegurança esse negócio, esse improviso na vida real… Ninguém decora texto, ninguém acerta o figurino, as pessoas entram quando não tem que entrar, me dá uma aflição! Ali é bom porque está organizado, ali eu sei o que dizer, eu vou para uma cabine, eu me transformo. Fico pequenininha, perna para a direita, braço para a esquerda. Quando eu estou bem num papel, estou desaparecida do mundo. Ninguém me acha, nem um detetive. Naquele momento, não tem mãe, não tem marido, não tem filho. Nem filho, eu já testei.

P – A Elis Regina dizia isso, que a coisa que ela achava mais interessante na vida era cantar, nem os filhos tinham tanta graça.
R- Impressionante, não tem. Organiza, relaxa. Aquele desespero que a gente vive constantemente, de estar agradando ou não, por uma hora e meia você tem um pouco de controle sobre isso! Muito bom.

P – É terapêutico?
R – É super terapêutico. Assim como é muito bom quando vem aquele momento dramático, ah, eu vou poder matar fulano, eu vou poder… você vai com tesão. Outra coisa terapêutica, tranqüilizadora, é você falar ‘agora, fulano entra´e ele entra! Naquele momento eu desapareço e tenho a ilusão de ter a realidade sob controle.

P – Você vai fazer música de novo? Você tem essa habilidade de ir para cá e ir para lá…
R- Vou, vou fazer um showzinho novo aí, morrendo de medo. Eu morro de medo. Eu faço música para me dar um frio na barriga de novo. Estou sentindo falta de um frio na barriga. Arriscar, afinar o sangue.

 

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