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Excesso de mundo

A escritora francesa Annie Ernaux, premiada com o Nobel de Literatura em 2022, descreve em seu livro Os anos os primórdios da internet e seus efeitos perturbadores sentidos pelo público. Em sua narrativa sobre o mundo europeu do pós-guerra, é como se o universo digital tivesse desabado sobre culturas longamente assentadas e então sacudidas por novidades que chegavam para ficar.

“Na internet, bastava escrever uma palavra-chave para surgirem milhares de ‘sites’, jogando em desordem pedações de frases e fragmentos de textos que nos sugariam para outros lugares em uma caça ao tesouro excitante, um achado atrás do outro indo até o infinito de uma coisa que não estávamos buscando. Dava a ilusão de podermos dominar a totalidade do conhecimento, entrar na multiplicidade de pontos de vista jogados em blogs em uma língua nova e brutal.”

Um salto no tempo nos leva ao encontro de outra escritora premiada com o Nobel de Literatura, a polonesa Olga Tokarczuk, que fala da sensação aguda de “excesso de mundo” ao se conectar com a rede. Em seu livro intitulado Escrever é muito perigoso, ela traz reflexões sobre acontecimentos recentes. E analisa com olhar crítico a adição às telas.

“Vamos chamar de Síndrome da Mulher de Ló essa nossa imobilidade frente às telas, que já se pode comparar com a catatonia. Ela afeta milhões de jovens e incels que, sobretudo durante a pandemia, se voltaram para as cidades em chamas, apesar dos avisos, e já não conseguem desviar o olhar”. A referência à personagem bíblica, transformada em estátua de sal ao olhar a cidade incendiada, é uma imagem poderosa para descrever um comportamento que se tornou usual.

São textos literários que traduzem de forma singular fenômenos observados de perto por teóricos que se dedicam a analisá-los com viés científico. O prisma da sobrecarga de informação experimentada na vida mediada pela digitalização, por exemplo, é um dos motes centrais do filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han, professor da Universidade de Artes de Berlim e autor do instigante livro A sociedade do cansaço.

O diagnóstico de Han é categórico: “A comunicação generalizada e a sobreinformação ameaçam todas as defesas do ser humano”. Ele enxerga, como diz no livro, “um excesso de estímulos, informações e impulsos, transformando radicalmente a estrutura e a economia da atenção.” O resultado é que a percepção se torna “fragmentada e dispersa”. Em outro trecho, acrescenta que “a atenção dispersa ou distraída é caracterizada pela mudança brusca do foco da questão, pela alternância constante de tarefas, fontes de informação e processos”.

É nesse contexto carregado de complexidade que se formulam indagações sobre os efeitos positivos e negativos que os sistemas de Inteligência Artificial (IA) podem provocar. No limiar de sua generalização no cotidiano, há convicção de que é possível contar com uma simplificação de tarefas intelectuais repetitivas, que ficariam a cargo desses novos sistemas, reservando-se o trabalho humano para atividades que requerem criação e inventividade.

A produção de conteúdo pela tecnologia digital, a partir de poderosas bases de dados, pode ser um caminho viável para a organização desse universo informacional caótico em que estamos todos mergulhados – eis uma faceta positiva da IA. Ao mesmo tempo, o campo da comunicação pode se tornar um território ainda mais escorregadio pela proliferação de conteúdos falsos e maliciosos, que serão produzidos com muito maior verossimilhança em diferentes linguagens de texto, imagens e áudios.

Lidar com a perspectiva de uma avalanche de fake news, com potencial viral agressivo e capaz de impactar tanto os profissionais da comunicação como as empresas que se tornarem alvo dessas mensagens, é um desafio ainda por dimensionar. Os ruídos que envolvem esses novos ecossistemas começam a ficar visíveis para parcelas maiores da sociedade e devem se tornar ainda mais agudos em períodos de embates políticos e ideológicos, como nas eleições municipais que se avizinham em 2024.

Em recente estudo sobre jornalismo, inteligência artificial e desinformação, que envolveu o uso de sistemas generativos baseados em GPT, os professores Elizabeth Saad e Márcio Carneiro dos Santos apresentaram a conclusão de que a atuação do humano nos processos jornalísticos é imprescindível, “por meio de funções editoriais e de checagem ativas, garantindo a legitimidade do campo junto à sociedade”. São as primeiras respostas.

 

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