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Inês Peixoto

Ines Peixoto - Foto: Adalberto Lima

No mundo do teatro e da paixão

"Aprender sempre e lidar com o novo" Foto: Adalberto Lima
“Aprender sempre e lidar com o novo” (Foto: Adalberto Lima)

O mundo da atriz Inês Peixoto é profundamente teatral. Suas histórias são as histórias das personagens que interpretou e que contam sua vida. Seu espaço são os palcos sagrados em que pôs os pés.

Ela pode medir a passagem do tempo pelas tendências que se sucederam no cenário brasileiro. Assim como marca em seu próprio corpo a evolução dos instrumentos de que lança mão para representar – os movimentos, a voz, o espírito.

A entrevista com a premiada atriz mineira é um mergulho em sua paixão pela carreira que exerce há 26 anos, boa parte dos quais integrada ao Grupo Galpão, que tornou Belo Horizonte uma referência de qualidade e inovação nas artes cênicas.

Inês iniciou sua participação no Galpão quando contava dez anos de atividade teatral e considera esse encontro “um presente de aniversário por uma década de lutas”. Mais recentemente, tem conseguido exercitar-se também no cinema – um sonho que julgava ao mesmo tempo fascinante e impossível.

O seu percurso foi sempre acompanhado pelo desafio de exercer o ofício num ambiente adverso, marcado por oportunidades escassas e uma instabilidade quase crônica no mercado de trabalho. Em Minas, está ausente o aparato televisivo que cerca as atrizes nos grandes centros do País. Assim como faltam iniciativas para consolidar um espaço mais amplo de produção para o cinema e a televisão, o que ela defende com ardor, a exemplo do que se tornou realidade no Rio Grande do Sul.

A conversa com Inês significa também a oportunidade de constatar o enorme prazer com que ela se dedica à sua arte. O cuidado na composição das personagens, atestado uma vez mais pela protagonista que interpreta no filme O Crime da Atriz, não é apenas cosmético. Como ela própria diz, é preciso preencher a alma para que possa ser de verdade – no palco, na rua, no cinema, em qualquer lugar onde se encontre uma atriz e alguém disposto a entrar no jogo da representação. (Beth Cataldo)

“O que realmente fica é o que tem a consistência de um trabalho”

Pergunta – O que significa ser atriz hoje, numa época marcada pelo culto às celebridades?
Resposta – Pra mim, significa o que sempre significou. Ser atriz é uma profissão como outra qualquer, em que se precisa ter a disponibilidade de aprender sempre e lidar com um material novo a cada trabalho. Ser atriz para mim significa ter uma atenção especial à saúde, porque o nosso principal instrumento é o corpo e a voz. E, evidentemente, o espírito, que é de onde a gente tira a matéria para os personagens. Acho que existe mesmo esse culto às celebridades, em que as pessoas se tornam atores e atrizes a partir de qualquer situação em que são colocadas em evidência. Sem essa coisa de preconceito, é como se o momento em que os holofotes estão em cima da vida de uma pessoa a capacitasse para ser ator ou atriz. Acho que a gente vive numa época de fogos fátuos. Um ator de verdade e uma atriz de verdade passam por um outro viés. Tem que estudar muito para exercer a profissão, praticar muito, aprimorar muito o corpo, a voz e a cabeça, enfim. Acho que essas coisas acontecem mas elas não permanecem.

P – E o que fica?
R – O que realmente fica é o que tem a consistência de um trabalho, esse, sim, vai continuar. Quando você vê uma pessoa com uma trajetória interessante é porque ela realmente desenvolveu o exercício do teatro e da atuação. O pior é realmente colocarem pessoas que não estão preparadas num veículo de comunicação de massa, como é a televisão ou o cinema. No teatro também acontece, mas é mais difícil a pessoa conseguir se manter, normalmente não é um campo que eles procuram porque é mais difícil. Mas você vê algumas ingerências no campo teatral que são caça-níqueis mesmo. São pessoas que estão em evidência por um motivo que não a arte.

P – Gostaria de saber de sua formação como atriz, da passagem pelo Teatro Universitário e outros centros.
R – Infelizmente, não tenho uma formação acadêmica em teatro. Na época em que comecei, não existia faculdade de artes cênicas em Belo Horizonte, foi implantada depois. Tive uma breve passagem pelo Teatro Universitário e depois entrei para o curso do Cefar, que é o curso de formação artística da Fundação Clóvis Salgado. Tenho uma formação de vivência mesmo, em que procuro estudar o máximo que eu posso.

P – Certamente a convivência com uma companhia como o Grupo Galpão te deu acesso a todo um aparato para o seu crescimento como atriz, não?
R – Nossa, tremendamente. A partir da minha entrada no Galpão eu tive a oportunidade, sem dúvida, de entrar em contato com esse fazer teatral de grupo, que é diferenciado. Porque é um grupo de pessoas que têm um projeto a longo prazo. A gente não faz montagens por fazer montagens. Não tenho nada contra, já fiz muito – tenho essa maleabilidade, não sou contra nada. Eu já trabalhei tanto em montagens comerciais como, mesmo antes do Galpão, tentei fazer produções mais elaboradas, como um espetáculo do (Fernando) Arrabal que produzi. Enfim, quando entrei no Galpão, realmente consegui encontrar um grupo de pessoas que me encaminhou para algo que eu procurava e que ainda não tinha encontrado em produções solitárias.

P- Em que ano isso aconteceu?
R- Entrei para o Galpão em 92. Assim como o Galpão, tenho 25 anos de carreira. Quando entrei, coincidentemente, eu estava fazendo dez anos de carreira e o Galpão, dez anos de existência. Acho que foi um presente de aniversário para mim, de uma década de lutas. Quando você entra num grupo como o Galpão, entra num projeto de vida, num projeto de pesquisa. Passa a enxergar caminhos, começa a trilhar um caminho com um viés diferenciado.

P – As atrizes que estão sujeitas a produções mais erráticas, sem continuidade, enfrentam uma luta mais árdua?
R – Sim, é mais difícil. Tive essa experiência porque não comecei a minha carreira num grupo. Apesar de ter trabalhado em vários espetáculos com os mesmos produtores, os mesmos companheiros de cena, acho que é mais solitário. O grupo te permite desenvolver áreas que solitariamente você não desenvolveria. Por exemplo, o Galpão utiliza música, e eu achava que nunca iria dar conta de estudar música, de tocar um instrumento. Eu não usava isso na minha prática teatral. Quando entrei para o grupo, eles já estavam trabalhando havia alguns anos com essa idéia de cada ator tocar um instrumento, de executar as trilhas ao vivo. Então, você fala, agora eu vou encarar isso, chegou a hora de tirar essa coisa de que não dou conta de música, vou ter que dar conta sim – e você dá. Isso vai ser aproveitado, você faz uma descoberta bacana de que a música é uma coisa maravilhosa para o ator, como partitura de cena também. Quando você entende a música, consegue entender o que é ritmo, enfim. Tocar em cena é também um exercício de concentração maravilhoso para o ator. É um recurso que resulta para fora, mas resulta para dentro também, nessa questão do seu desenvolvimento.

"Os festivais abrem um olhar muito mais amplo em cima do fazer teatral do mundo." Foto: Bianca Aun
“Os festivais abrem um olhar muito mais amplo em cima do fazer teatral do mundo.” (Foto: Bianca Aun)

P – O fato de estar integrada a um grupo te deu, portanto, muito mais possibilidades de desenvolvimento.
R – Em todos os sentidos, minha escola maior, de desenvolvimento da música, de começar a pensar um projeto desde a sua primeira célula. Nesse ponto, entramos num viés de pesquisa, que é sempre delicioso. Quando você começa a tocar em algum assunto ou época sobre as quais quer falar, abre-se um enorme viés de pesquisa. E a vivência de festivais, que é muito importante também para um ator. Comecei a ter contato com outros grupos do Brasil, de teatro de rua e de palco também.

P – Um intercâmbio, uma troca de experiências….
R – Festivais nacionais e internacionais, o que abre um olhar muito mais amplo em cima do fazer teatral do mundo. Mesmo que encontre tendências que não batem com a sua, é sempre muito bom ver como tem milhões de pessoas pensando teatro, cada um à sua maneira.

P – Ao longo de sua trajetória, o Galpão alterna experiências de teatro de rua e de palco, chamando atenção para as diferenças – o teatro de palco exigindo um rigor maior, mais acabamento, enquanto o teatro de rua é mais jogo e improvisação. Para você, o que significam essas duas experiências, esses dois campos de experimentação?
R – Acho que vêm somar. Tanto a rua quanto o palco trazem ferramentas interessantes. Na rua, ao mesmo tempo em que você trabalha com mais abertura de expressão e de corpo, tem que trabalhar com uma ampliação de voz. A rua exige um grau de concentração incrível porque você tem que estar aberto ao que acontece ao seu redor. Muitas vezes, o que acontece ao seu redor enriquece a cena. Você trabalha muito com improviso, com o imprevisto, com uma expansão de energia muito grande. Sua energia tem que estar indo para os 360 graus… Na rua, você lida com o tempo, com o barulho e com pessoas que muitas vezes não vieram para assistir o seu espetáculo, elas estão passando. É claro que quando se anuncia um espetáculo do Galpão na rua, muita gente chega para ver. Mas muita gente pára porque viu um movimento ali e nunca ouviu falar de Galpão. A gente viaja por praças diversas do Brasil e do mundo, e vê aquele movimento, aquela coisa montada e tem a missão de fazer com que aquelas pessoas fiquem ali e assistam. Então, você tem que capturar as pessoas.

P – E o palco?
R – O palco já oferece uma situação propícia, que é a criação de uma falsa noite. A partir do momento em que o ser humano entra numa caixa preta, já está aberto para entrar na fantasia. Ele está a fim de entrar no jogo. Então, você lida com uma platéia que está ali mais predisposta. Isso não quer dizer que seja mais fácil, porque o público tem um olhar mais aguçado. Dentro de uma caixa preta, os olhos de quem te assiste se transformam em olhos bem maiores, eles não têm nada competindo em volta. A atenção da platéia é muito grande. Você tem que, do mesmo modo, capturar aquela platéia e levá-la com você. Mas no palco você trabalha com uma platéia que já está mais dentro do jogo.

P – É uma energia diferente que você sente?
R – A energia do público é sempre linda. E é diferente a cada apresentação. Isso é a verdade mais pura que existe. Acontece algo que é uma coisa inexplicável. Você pode estar no mesmo teatro, com a mesma luz, a mesma caixa preta, o mesmo número de pessoas, mas um espetáculo nunca vai ser igual a outro porque existe uma troca de energia, que é inexplicável. Às vezes, isso não acontece. Você sente que o espetáculo está correto, as coisas estão corretas, não acontece nada demais, só que não existe uma troca de energia, é engraçado, não é? Não sei se a gente não conseguiu capturar, se não houve a famosa empatia. Às vezes, não acontece.

P – Você já passou por essa experiências?
R – Muitas vezes. Você sai e fala – não que o espetáculo teve algum problema sério, mas não aconteceu. Isso acontece na rua, no palco. Eu adoro os dois espaços. A rua te joga mais perto do olho do espectador, a gente faz o espetáculo com o espectador sentado na beira. Às vezes, você olha no olho de uma pessoa e passa uma coisa na hora que é impressionante. Outra hora, a pessoa está com um olho brilhante e aquilo te dá uma injeção, te passa uma emoção. No palco, é um pouco mais distante, você percebe isso também, mas na rua você dá de cara com as pessoas. É forte, é muito próximo. Você consegue essa proximidade também no palco, quando é possível, não é em todos os momentos que se consegue olhar no olho do espectador.

"Eu consigo enxergar minha maturidade para abordar personagens e usar os recursos desenvolvidos ao longo dos anos." Foto: Bianca Aun
“Eu consigo enxergar minha maturidade para abordar personagens e usar os recursos desenvolvidos ao longo dos anos.” (Foto: Bianca Aun)

P – O tempo e a experiência te fazem perceber mais a platéia ou a profissionalização leva a um certo distanciamento?
R – Quanto mais experiência eu tenho em teatro, acho que sei menos; quanto mais estudo, tenho mais a estudar, são tantas épocas para beber… Evidentemente, o tempo te dá algumas ferramentas para lançar mão. É claro que ao longo do tempo você domina algumas técnicas que são necessárias – tem domínio do seu corpo, da sua voz, do que você pode lançar mão para criar uma cena, para estar ali diante do público. O tempo te dá isso. Mas, para mim, o contato com o público é sempre uma coisa nova, é sempre uma primeira vez. Cada público é diferente. Eu consigo enxergar a minha maturidade para abordar personagens e usar os recursos desenvolvidos ao longo dos anos em que tenho estudado. Oficinas, encontros com pessoas interessantes que ajudam a aprimorar o seu olhar em cima do trabalho, do seu personagem – tudo isso me traz segurança para desenvolver o meu trabalho, como eu quero enxergar o personagem, como é que eu chego nele, os caminhos que passo. Estou sempre em busca disso e assimilando as coisas interessantes que eu vou pegando aí pelos anos, nos encontros…

P – Quer dizer, a experiência não anula esse olhar de encantamento que você tem com o teatro?
R – Não, não.

P – Queria recuar um pouco no tempo e falar de sua decisão de ser atriz. Qual foi o impulso que te levou a esse caminho? Por que você decidiu se tornar atriz?
R – Não decidi, acho que ser atriz é que me escolheu. Estou fazendo uma brincadeira, porque é incrível, desde a minha infância, com seis anos de idade, eu transformava tudo em encenação. Eu vivia num mundo muito ligado à encenação. E eu tinha uma coisa de transformar… por exemplo, as camisolas da minha mãe viravam os vestidos longos das princesas. Outra coisa que eu fazia era pegar esses plásticos de lavanderia que vem nos ternos e cortar aquilo em tiras fininhas para fazer perucas de cabelos longos das princesas, aqueles cabelos enormes. Eu vivia no mundo da lua.

P – O cinema também fez parte de sua infância?
R – Fui ao cinema pela primeira vez aos cinco anos de idade. Eu era completamente apaixonada por cinema. A gente também via muito filme na televisão, nessa época. Os filmes antigos, como O Mágico de Oz, passavam na programação da televisão, não havia vídeo. O cinema me alucinava e o teatro foi se consolidando como uma coisa mais próxima, mais possível. Fui tomando contato com o teatro desde os seis anos. E aí comecei a transformar em encenação os trabalhos de escola, por minha conta. Eu me lembro que, aos doze anos, fiz uma adaptação da Abolição da Escravatura para teatro. A apresentação do meu grupo de estudo foi através de uma encenação. Em vez de irmos lá na frente apresentar, colocar características, conseqüências e causas no quadro, transformei tudo em encenação. Foi muito legal. Aí eu vi como o teatro era importante para mim e como podia ser transformador. Você consegue falar de tudo com o teatro.

P – Quer dizer, você sentiu que era uma forma de expressão…
R – Era uma forma de expressão nata. A minha forma de expressão nata foi através da representação.

P – E mais à frente, quando começou a atuar profissionalmente como atriz, você enfrentou dificuldades, oposição familiar? Ou foi uma coisa tranqüila?

R – Não senti muita oposição, não. Meu pai tinha vontade que eu fosse dentista, cheguei a fazer um vestibular para Odontologia, depois fiz um para Comunicação, mas já estava fazendo teatro. Acabou que não passei, fui me desligando dessa idéia de uma outra profissão e entrei de cabeça no teatro mesmo. Quando decidi fazer o primeiro contato com uma escola foi no Teatro Universitário. Entrei para o TU mais ou menos aos 19 anos. Depois fui para a Fundação Clóvis Salgado e lá havia um estágio no segundo ano, quando fiz uma peça infantil chamada A Lenda do Vale da Lua, de João das Neves. Eu fazia a peça em pátios de escolas da periferia, em Belo Horizonte inteira, em qualquer lugar, era como se fosse um teatro de rua, que mais tarde veio a ser a minha experiência com o Galpão. Num primeiro momento, comecei a tentar entrar em algum grupo. Eu me lembro que fui na escola da Priscila Freire, que funcionava embaixo no Teatro Marília, e eles estavam ensaiando uma montagem. Bati lá e conheci um ator chamado Kimura. Falei que estava querendo conhecer as pessoas de teatro. Isso foi legal, porque fui sozinha, na minha família não tem ninguém artista.

P – E a área artística costuma ter muito essa tradição familiar.
R – É. A única referência que tenho é que a minha avó paterna tinha muita vontade de ter sido cantora de ópera. Mas é uma família árida, digamos, em termos de aptidão artística. Com a cara e a coragem eu fui, tive um contato com uma atriz que era amiga da minha irmã, a Sandra Mansur, que me levou para ver a primeira peça. Mas foi uma luta muito solitária. Fui bater em produções, eu não conhecia ninguém de teatro. Quando bati lá – ‘ah, estávamos até precisando de uma pessoa, mas já entrou uma atriz”. Eu não tinha experiência. E aí pensei que a única maneira de começar a conhecer as pessoas de teatro seria entrar para uma escola. Queria entrar, aprender, fazer contatos, estar aprendendo e começando a exercer realmente o ofício. A partir do momento em que entrei para a escola, comecei a estudar teatro e a conhecer as pessoas, tomei isso como um caminho para a minha vida. Realmente, eu pensei – mesmo que passe mais dificuldades, vou trabalhar com o que eu gosto porque quero ser feliz, quero tentar ser feliz (risos).

"Quanto mais você pesquisa, mais detalhes enxerga, eles são interiores e te ajudam na construção. Em busca do personagem, você tem que ir cavando, achando um elemento, o outro e outro." Foto: Adalberto Lima
“Quanto mais você pesquisa, mais detalhes enxerga, eles são interiores e te ajudam na construção. Em busca do personagem, você tem que ir cavando, achando um elemento, o outro e outro.” (Foto: Adalberto Lima)

P – A gente falou um pouco da distinção entre teatro de rua e de palco e gostaria de falar também das diferenças entre cinema e teatro. Você tem feito cinema, inclusive O Crime da Atriz, e pode falar dessas diferentes formas de representar.
R – O cinema era um sonho impossível e o teatro é um sonho mais possível. Felizmente, nos últimos anos, tenho conseguido ter um pouco de oportunidade de trabalhar com o cinema. Tive a experiência com o Hoje é Dia de Maria, com o Luiz Fernando Carvalho, que foi um processo muito rico, como se fosse cinema e teatro. Comecei a ter um processo de cinema mais interessante com a Elza (Cataldo), no filme Vinho de Rosas, quando tivemos a oportunidade de aprofundar, de fazer uma pesquisa. A Elza tem essa ligação com a história, isso te preenche demais. Quanto mais você pesquisa, mais detalhes enxerga, eles são interiores e te ajudam na construção. A busca para construção de um personagem é a mesma, para mim.

P – Como se dá o seu processo de criação?
R – Tanto no teatro como no cinema, procuro ler muito sobre a época em que se passa o trabalho, o entorno, tomar contato com a literatura ligada ao tema, ao país. Aí você vai enchendo a sua imaginação de detalhes para formar a pessoa, uma flor que ela gosta, um lugar que ela já visitou e que pode fazer parte de um outro livro que você leu… Esse processo de verticalização é como cavar. Quando a gente cava a terra, está em busca de um tesouro. Metaforicamente, você acha água, acha petróleo, às vezes, um baú de ouro. Em busca do personagem você tem que ir cavando, vai achando um elemento, o outro e outro. É legal que isso seja feito para os dois, o teatro e o cinema. Agora, no teatro, tenho uma noção como atriz de que, depois que ensaio uma peça, a apresentação é minha. O diretor esteve comigo até um certo ponto. Eu é que sei o que vou fazer com o meu braço, estou inteira ali no palco. Se eu quiser descobrir uma coisa nova com o meu braço, com o meu pé, durante a temporada, eu vou criando, é meu. É do diretor também, mas aquilo é meu. E o cinema tem esse encantamento de perpetuar o momento. Isso é muito interessante para o ator também porque o teatro some, desaparece, não é?

P – É como se fosse perecível…
R – Porque o teatro filmado não é a mesma coisa. E o cinema perpetua o momento. O cinema é também uma surpresa porque você faz um trabalho de ator mas o seu trabalho vai ser visto através da lente do diretor. Estou fazendo ali, inteira, mas não sei se o que está interessando a essa figura do diretor que está me olhando é a minha sobrancelha. Não sei se o que ele está querendo saber é se a minha sobrancelha vai se movimentar. Então, você tem que ter confiança no que está fazendo e entregar, porque você está entregando para um outro olhar.

P – O atores em geral comentam muito sobre o ‘menos na tela. Enquanto o teatro exige a expansão de movimentos, voz, gestos, o cinema minimiza tudo?
R – É instigante porque você vai aos extremos. Eu faço, por exemplo, a rua, que é o oposto, você tem que crescer tudo. Existem espetáculos no palco que a gente tem que diminuir também, são mais intimistas. OPequenos milagres, que estamos fazendo agora, é bem mais intimista. No cinema, a câmera fotografa a alma. Você tem que estar repleto de alguma história, não pode estar vazio. A câmera entra no olho e o olho é uma janela para a alma mesmo. E essa alma tem que estar preenchida por alguma coisa, não sei o quê exatamente.

P – Você busca muito esse processo interior, não é, Inês?
R – É, acho que ele tem que existir. Os caminhos são loucos. Você pode estar com o seu interior alimentado por uma coisa que não tem nada, absolutamente nada a ver com o que está fazendo na cena. Se é uma coisa que você descobriu lá, na sua escavação, ela te serve para um momento em que você tem que estar preenchida por alguma coisa. É doido isso, não dá para explicitar. Mas não pode estar vazio. E tem que ser de verdade.

P – Existe um fascínio em viver uma outra vida, um outro ser, um outro olhar? Ser atriz é também a possibilidade de viver coisas que você não seria?
R – Cada vez mais, isso a experiência me trouxe, busco respeitar o que estou tocando. Sinto que quando toco um personagem entro em contato com uma cadeia ancestral de histórias. Então, tem que pedir licença mesmo e pedir ajuda. Li uma vez que uma contadora de história estava narrando uma história quando sentiu uma mão cutucando o pé dela. Aí, ela olhou para baixo e percebeu que estava em cima dos ombros de uma mulher velha. Ela se assustou e falou ‘meu Deus, eu não posso estar nos ombros da senhora, por favor, passe aqui para cima”. A mulher respondeu assim, ‘não, pode ficar tranqüila, porque abaixo de mim tem uma mais velha ainda”. Ela estava em cima dos ombros de uma mais velha, de uma mais velha, de uma mais velha… Existe uma cadeia. Acho maravilhoso você poder entrar numa história, dar vida a um personagem, que não é a minha história mas que vai trazer elementos da minha vida para que seja de verdade – elementos internos. E essa minha vida está ligada a milhões de outras, é uma cadeia. Não sei se é muito metafórico, mas isso a experiência me deu. Acho um grande encantamento pegar um personagem, e trato com o maior respeito, defendo muito, como uma entidade mesmo.

"A partir do momento em que entrei para a escola, comecei a estudar teatro e a conhecer as pessoas, tomei isso como um caminho para a minha vida." Foto: Adalberto Lima
“A partir do momento em que entrei para a escola, comecei a estudar teatro e a conhecer as pessoas, tomei isso como um caminho para a minha vida.” (Foto: Adalberto Lima)

P – Outra questão interessante de abordar é o confronto entre o drama e a comédia. Há atrizes que ficaram marcadas por serem mais dramáticas, outras são vistas apenas como comediantes. Você transita nesses territórios com a mesma vontade, a mesma aptidão?
R – Eu já fiz papéis dramáticos e tenho uma ligação forte com a comédia. Sou meio ‘palhacenta´sabe? Tenho uma cabeça que adora pensar brincadeiras, enxergo muito o humor das coisas, mesmo que seja negro. Tenho uma ligação interessante com a comédia, gosto muito da comédia. Gosto do drama também. Tenho tido a felicidade de exercitar esses dois, a tragicomédia, a comicidade trágica, sei lá, misturar, passear em todas as praias. Às vezes, você fica presa a um estilo de trabalho. Acho legal poder transitar por esses vários territórios, em trabalhos mais naturalistas, trabalhos mais experimentais. É uma sorte que eu tenho.

P – Em sua experiência, a improvisação é um recurso que tem lugar? Existem atrizes que não concebem muito o improviso e alguns diretores acham que não passa de uma deturpação do texto.
R – A improvisação é bacana quando ela realmente acontece, quando existe uma situação que provoca isso e não é algo gratuito. Se o ator tiver a presença de lançar mão de uma situação que se torne interessante para uma improvisação, acho isso genial. Existem também espetáculos em que você joga com a platéia o tempo inteiro, essa é a proposta. Mas se for um espetáculo fechado, acho que o grande barato está em aproveitar situações para poder improvisar e não usar isso como uma muleta, sempre buscar onde você pode improvisar.

P – Aí deixa de ser improvisação para ser uma coisa premeditada, não?
R – É. Às vezes, no próprio processo de criação de um espetáculo você descobre janelas propícias para várias coisas, para ‘cacos´, que podem enriquecer bastante um espetáculo. Acho que o improviso é genial quando decorre de uma situação, não é premeditado. Aconteceu, o cara pegou aquilo e transformou.

P – Queria chegar a O Crime da Atriz em que a personagem em cena não só improvisa como arrebata o papel principal. Como você analisa a atitude dessa atriz?
R – Acho genial a coragem da personagem. Ela não premeditou aquilo, ela vem de uma vida tão frustrada, sem chances, com pessoas do lado dela que têm toda chance e não estão dando a mínima importância… Às vezes, a gente passa por isso na vida, não é? Tanta gente que está fazendo o que você queria fazer e está fazendo de uma maneira mal-feita, de qualquer jeito. E você a fim de fazer, a fim de construir, de ter uma oportunidade. Ela estava louca para construir uma personagem, querendo ter uma chance para exercitar a aptidão, o sonho dela. Não acho mesmo que ela premedita. Ela entra ali e se vê num estado de agitação, começa a fazer tudo, aquela loucura. Tem um rompante, em que transforma toda a história para o ponto de vista dela. Acho genial isso, porque além de ser essa coisa da transgressão como atriz é interessante sob outros aspectos. Você vê profissionais em todas as áreas que poderiam fazer alguma coisa mas não fazem. Por uma máquina burocrática, as pessoas que poderiam mexer as águas paradas não mexem e uma pessoa que teria a capacidade para isso se vê engessada. Ninguém tem coragem de quebrar e ela faz isso. Acho que várias atrizes que assistem ao filme devem falar assim, ‘eu fui vingada´. E de outras profissões também, como se as pessoas dissessem, ‘ela fez o que eu queria ter feito´.

“Acho genial a coragem da personagem do filme O crime da atriz

P – Há momentos em que a percepção que o ator tem de um personagem diverge totalmente da concepção do diretor, como é o caso no filme. Várias atrizes relatam conflitos na relação com os diretores. No seu caso, existiu esse tipo de conflito? Ou o fato de você estar num grupo como o Galpão, em que existe uma maior inserção do ator, mais voz ativa, evita esse confronto?
R – Acho o diretor uma peça fundamental. Acredito cada vez mais que o teatro bem feito, a televisão bem feita ou o cinema bem feito dependem muito do coletivo. Para você criar um personagem, é preciso ter várias pessoas – o historiador que deixou material pela vida para você pesquisar, o cara da luz, o diretor que é um olho de fora no seu trabalho… Acho que esse conflito existe sim. É claro que, às vezes, você tem um ponto de vista diferenciado do seu personagem. Mas esse embate é bom também. Às vezes, se o diretor não cede, você tem que fazer o personagem de uma maneira que está mais conectada com a visão do diretor. Aí é a hora de você achar a transgressão interna, criar um movimento interno, uma fuga interna, para conseguir encarar aquele trabalho de maneira salutar para você.

P – Com sua experiência diversificada, no teatro de rua e de palco, você pode contar algumas histórias marcantes que viveu ao longo desse tempo?
R – São muitas histórias. Por exemplo, Romeu e Julieta em São Paulo, quando a gente estreou. Ver o Zé Celso (Martinez Corrêa) sentado na Praça da Sé assistindo Romeu e Julieta… Vários anos depois, encontramos o Zé Celso no Festival de Inverno de Ouro Preto, ele assistiu um Brecht nosso – Um homem é um homem. Ele subiu no palco, abraçou todo mundo, é uma figura muito emblemática do teatro brasileiro. A própria Tônia Carrero já esteve sentada num banco na praça dos Correios, assistindo Romeu e Julieta, ela toda linda, vestida de seda, no Rio.

P – Vocês interagiram com pessoas da rua também?
R – Muito. Uma vez, em Ouro Preto, o espetáculo estava super concentrado e uma mulher que estava bêbada, uma mulher de rua, começou a gritar. A gente ficou naquela saia justa porque a rua é um espaço da liberdade. Você está fazendo um espetáculo de rua e se uma figura da rua, desequilibrada, começa a gritar, é difícil. Mas eu estou na rua, estou invadindo ali também! Aí, a própria audiência, o próprio público começou a tirar a mulher. Foi uma situação muito estranha porque a gente estava na rua, a gente estava no espaço dela. De repente, ela estava bêbada e incomodando quem estava vendo o espetáculo também. Era um nó na cabeça das pessoas. Aquela situação mais maluca e a gente manteve, conseguiu chegar até o fim. Cachorro entra muito no meio do espetáculo na rua e tem o tempo também, não é? A gente já parou várias apresentações por causa de chuva. Uma vez, na Venezuela, estávamos num festival itinerante, fomos a Caracas e várias cidades do interior da Venezuela. A gente foi numa cidadezinha, já entrando na floresta.amazônica. Estávamos apresentando o espetáculo num lugarejo e tinha umas cem pessoas. Caiu um temporal no meio da peça. Eles não queriam ir embora. Nós saímos correndo para uma sede, tipo um centro cultural. As pessoas não iam embora, queriam saber como é que terminava a história. A gente falou, então, vocês sentam aqui no chão dentro do galpão. Pegamos as cruzes, as latinhas de Romeu e Julieta e acabamos de encenar a história.

"A câmera fotografa a alma. Você tem que estar repleto de alguma história, não pode estar vazio. A câmera entra no olho e o olho é uma janela para a alma mesmo." Foto: TV Globo/Divulgação
“A câmera fotografa a alma. Você tem que estar repleto de alguma história, não pode estar vazio. A câmera entra no olho e o olho é uma janela para a alma mesmo.” (Foto: TV Globo/Divulgação)

P – São situações bem diferentes…
R – Vou até contar uma outra experiência. Nós já fizemos um Molière numa plataforma de petróleo, na P-26, da Petrobras. Uma experiência sensacional. A gente não podia levar o cenário, evidentemente, porque tem um limite de peso. Levamos só um figurino, os instrumentos. Fomos em dois helicópteros. Foi uma experiência muito emocionante porque lá tem um pequeno auditório em que cabem trinta pessoas. Fizemos duas sessões de Um Molière Imaginário naquele auditório. Eram os personagens só com a maquiagem, os figurinos, sem cenário. E eles ali com a gente. Foi muito emocionante! A gente brincou -a Belinha, quando entra em cena, vem a cavalo, aí eu arrumei um equipamento de mergulho, como se tivesse vindo do fundo do mar, brincadeiras assim. A gente usou para ‘cacos” a situação de estar em alto mar e foi uma experiência linda. As pessoas não têm idéia, aquilo é uma cidade em alto mar. São várias plataformas, eles têm um tempo lá e um tempo em terra. Com esse apoio da Petrobras, excursionamos pelo Brasil inteiro e achei muito legal ter podido ir onde é a extração. Pernoitamos lá, tivemos contato com o estado de alerta que eles vivem. A gente percorre quarenta minutos de helicóptero em alto mar até chegar lá. Você vai olhando para o mar e parece que está indo para outro planeta. Foi uma experiência muito interessante. Eu fiquei muito emocionada pelo contato com eles.

P – E nos palcos mais tradicionais, quais as experiências mais marcantes?
R – Já tivemos muitas emoções em teatros, como no palco do Globo Theatre, em Londres. A gente pisa num palco que é sagrado, é muito forte isso. Fizemos apresentações em palcos históricos do mundo. Existem teatros no Brasil que em si já são uma experiência, como o Santa Isabel, em Recife, o São Pedro, em Porto Alegre. Aqui em Minas, o teatro de Ouro Preto, o teatro de Sabará.

P – Outro aspecto no filme O Crime da Atriz que chama atenção é a cena em que ela é multada e recebe uma quantia mínima pela atuação na peça. Isso remete à questão da sobrevivência dos profissionais de teatro. Como é possível construir uma carreira profissional nessa área?
R – Assim como as atrizes do Nordeste e do Sul, nós somos atrizes fora do eixo Rio-São Paulo. Eu vivo profissionalmente de teatro desde 1992, quando comecei a fazer um estágio na fundação em que estudava. Vivo dentro das minhas possibilidades, tenho o que preciso e trabalho com o que gosto e acredito.

P – Você acha que o processo de profissionalização de atores no Brasil ainda está por se completar ou já é uma carreira estruturada?
R – É uma luta. A gente tem uma vida financeira muito sazonal, vamos dizer assim. Tem época que você trabalha com um pouco mais de abundância, se está em temporada, tem viagens, convites. Falo dos atores comuns como eu, que não têm um aparato televisivo. As pessoas que contam com esse aparato têm uma grana a mais, pintam mais chances nesse mercado paralelo, ganham um pouco de dinheiro com a propaganda, enfim. Se a gente for analisar a história, sempre houve um apoio institucional ao teatro, sempre existiram pessoas que fomentam, os mecenas. Isso sempre existiu. Atualmente, temos esses problemas, a lei de incentivo funciona por um lado mas…

P – Não existe uma estabilidade, não é?
R – É, acho que você tem que combinar com você mesmo que vai viver no risco. Todo mundo vive no risco, mas o ator vive num risco maior.

P – O fato de viver em Belo Horizonte, fora do chamado eixo Rio-São Paulo, limita uma atriz, tira oportunidades de crescimento?
R – Eu tinha muita vontade que se criasse um núcleo cinematográfico mais forte em Minas. Acho que temos profissionais para isso, tanto na área de direção e na área técnica do cinema, como também atores. A televisão também poderia conseguir desenvolver um sistema de produção legal porque temos capacidade para isso. Acho que falta uma articulação, sei lá, política, de tentar fundar um pólo cinematográfico e televisivo, que empregue mais atores, que nos dê a chance de também experimentar essa linguagem.

P- A concentração da produção cultural nos grandes centros restringe a riqueza e a diversidade cultural que o país tem? Em outras palavras, dificulta o acesso do público a outras visões, outras maneiras de ser e de ver?
R – Eu viajo muito, então, tenho uma convivência com o que acontece no Brasil. Talvez essa pergunta me abra para uma reflexão sobre isso. Acho que realmente chega pouca coisa. Por exemplo, a gente vai no Sul, tem lá a Casa de Cinema de Porto Alegre, com muitos filmes que não chegam até nós. Eles fazem uma produção bacana de cinema. Assim como devem existir outros pólos. Quando eu penso em Minas em termos de literatura, enxergo um potencial enorme para transformar esse material em bons produtos cinematográficos e televisivos. Quando se fala de direção, de escola, de atores, a gente tem. É um sonho que a gente pudesse exercer mais essa área. Estou falando como atriz. No teatro, a gente conseguiu, por exemplo, com o Galpão – viajamos no Brasil, no mundo inteiro, eu consigo dar vazão ao meu lado de atriz para o teatro maravilhosamente bem.

P – Uma questão que gostaria de perguntar é se o teatro de inspiração política, dos anos 60 e 70, deixou alguma coisa em termos de dramaturgia ou foi algo muito datado? Existem peças e encenações que marcaram a sua geração?
R – Existem montagens emblemáticas dessa época, como Eles não usam black-tie, e grupos que deixaram um legado muito bonito, como o Oficina e o Arena. Eu peguei uma geração na frente e quando penso nessa época do teatro imagino que deve ter sido muito triste o momento, mas também muito engrandecedor para esses artistas. Deve ter sido muito bonito para eles a maneira como conseguiram, debaixo de uma ditadura, dar o truque e fazer cumprir essa função do teatro como um agente político, conscientizador, instigador. Quando leio sobre isso fico com um sentimento de saudade de uma coisa que eu não vivi…

"Adoro minhas personagens! Sou uma leviana, apaixonada, tenho muito carinho... Cada uma delas é uma pedrinha que vou pondo nesse cestinho e guardando. É a história da minha vida." Foto: TV Globo/Divulgação
“Adoro minhas personagens! Sou uma leviana, apaixonada, tenho muito carinho… Cada uma delas é uma pedrinha que vou pondo nesse cestinho e guardando. É a história da minha vida.” (Foto: TV Globo/Divulgação)

P – E o que é o teatro hoje? Vocês que transitam tanto, que acompanham e vêem festivais enxergam alguma tendência, alguma coisa no horizonte?
R – Os festivais me trazem um sentimento muito especial. Em várias partes do mundo e do Brasil, a gente encontra centenas de pessoas agrupadas pensando teatro. Cada uma com a sua tendência – os festivais normalmente são muito variados. Vivemos uma época de liberdade de expressão, que foi conquistada. Você pode falar de tudo, não há restrições.

P – E dentro dessa liberdade, você acha que há criação?
R – Há criação, sim. Quando comecei nos anos 80, ainda existia censura, tinha que fazer apresentação para os censores, às vezes cortavam partes. Ainda peguei um pouco isso no início dos anos 80. Existiam grupos irreverentes, foi uma época da proliferação doBesteirol, que acho uma delícia, adoro, grandes atores trabalharam nessa linha. Depois, veio essa coisa do encenador, da imagem muito forte, esse teatro imagético, corporal, todas as linguagens…

P – Há uma tendência predominante ou hoje é um pouco de tudo hoje, com essa liberdade maior?
R – Acho que hoje é um pouco de tudo mesmo. Numa época, era legal só o teatro corporal, depois era aquela coisa do efeito, vários diretores que apontaram para caminhos assim. O que eu sinto é um pouco de busca de novas dramaturgias, uma busca mais latente. Parece que há uma negação, raramente montam-se os clássicos. E os clássicos não são clássicos à toa. Quando você vai ler um texto clássico, vê que é maravilhoso mesmo. Mas eu sinto que existe uma investigação maior, vejo as pessoas tentando caminhos diferentes mais na dramaturgia.

P – É uma inquietação?
R- Acho que teve um boom dessa coisa do poder do corpo e dos efeitos de imagem. As pessoas já assimilaram um pouco essa linguagem. Hoje, eu sinto uma busca…

P – Você acha que existe uma busca de temas nacionais, de temas que interfiram mais na realidade?
R – O mundo mudou muito nessas duas últimas décadas, acho que a gente não está conseguindo expressar esse redemoinho de transformações sociais, urbanas, comportamentais, éticas, ambientais… O ser humano está sendo bombardeado por essas transformações.

P -Você tem algum papel predileto entre os inúmeros que já fez? Qual foi o que mais te deliciou?
R – Nunca contei o número de personagens que fiz. Adoro as minhas personagens! Sou uma leviana, apaixonada, tenho muito carinho… Por exemplo, a Marília de Dirceu que fiz com Elza. Foi uma época em que eu estava precisando muito fazer uma personagem mais delicada, mais contida. E não sei por que cargas d”água, a Elza me chamou para fazer o papel. Então, veio toda a pesquisa que fiz sobre a delicadeza da vida da Marília e o personagem, que é pequeno no filme, mas que foi muito bom para mim. Depois, gostei muito das duas personagens que o Luiz Fernando Carvalho me chamou para fazer na minissérie Hoje é dia de Maria, a Rosa e a dona Boneca. Elas tocaram muito fundo na minha alma. Eu gosto muito da Maria, que faço no Pequenos Milagres, é um personagem que me leva muito para a minha infância. Tenho um carinho também muito especial pela senhora Capuleto, do Romeu e Julieta, que foi o primeiro trabalho que eu fiz com o Gabriel Villela e com o Galpão. Eu tinha uma grande admiração por ele, nunca havia sonhado trabalhar com ele e coincidiu que a minha entrada no Galpão foi para esse trabalho. Então, foi um personagem que me fez trabalhar com o Galpão, que eu já admirava, e com o Gabriel Villela.

P – Quer dizer, no fundo, são todas as personagens…
R – É, tem várias, cada uma é especial. A Belinha, do Molière, é linda, a Maria Madalena, e aí vai para a Pamela, que foi o meu encontro com o Cacá Carvalho como diretor. Cacá Carvalho, se a gente poderia dizer, é um cientista do teatro. Ele põe o ator no tubo de ensaio e ele te ferve, ele te pipeta, ele faz tudo. E isso é maravilhoso. Ele mudou a minha forma de enxergar.

P – Um viva a todas as personagens, então.
R – Essa personagem de O Crime da Atriz, a Ismênia, é tudo de bom que a Elza podia ter me dado. É um presente, porque ela concretiza uma loucura que, muitas vezes, eu tive vontade de fazer, de chegar a chutar o balde, fazer do jeito que eu sentia. Nossa, então, é um presente você poder exteriorizar isso através de uma personagem. Adoro também. Eu diria que é como se eu tivesse um frasco, um cestinho em que eu guardo pedrinhas preciosas. Cada uma delas é uma pedrinha que vou pondo nesse cestinho e vou guardando. É a história da minha vida.

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