“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”
A Inteligência Artificial (IA) pode já ter se tornado um tema batido, mas seus impactos em nossas vidas e na economia são ainda pouco compreendidos. Ademais, é apenas uma dentre várias tecnologias que avançam a velocidade crescente e definirão o futuro de profissionais e empresas (e nações). Dito isso, começo com uma obviedade. No futuro, existirão apenas dois tipos de empresas: aquelas que usam IA e aquelas que fecharam as suas portas. E atenção, esse futuro chegará rápido. Prepare-se.
O crescimento da tecnologia muda tudo
Em 1960, as empresas que compunham o índice S&P 500 tinham, em média, 60 anos de vida. Isto é, em média, tinham sido fundadas há 60 anos. Hoje, as empresas no S&P 500 têm, em média, menos de 20 anos. Reduziu-se o tempo de vida das empresas e o principal fator por detrás desse processo é o avanço tecnológico.
Em 1965, Gordon Moore, quem posteriormente fundaria e se tornaria CEO e Chairman da Intel, observou em um artigo que o número de transistores em um circuito integrado, ou seja, em um chip de computador, dobrava a cada 24 meses. A dita Lei de Moore se tornou paradigmática, passou a ditar o padrão a ser perseguido e a inspirar os projetistas de semicondutores. É um bom exemplo de uma profecia se autorrealizando.
Tecnologistas como Ray Kurzweil expandiram a análise para antes da época da eletrônica digital, revelando um padrão de crescimento exponencial do desempenho das tecnologias de processamento de dados e informações que já se fazia presente mesmo antes da invenção do transistor.
Esse padrão de crescimento ‘exponencial’ (sim, o termo é bastante controverso, mas esse é assunto para outro texto) do desempenho aparece em várias áreas: biotecnologia, impressão 3D, tecnologias espaciais, robótica, geração fotovoltaica, redes de computadores, entre outras. A aplicação combinada dessas várias tecnologias impulsiona mudanças em nossas vidas cotidianas e em todas as áreas de negócios, da indústria (você já ouviu falar em manufatura avançada ou indústria 4.0?) ao entretenimento (você já pensou na vida sem streaming de áudio ou vídeo?), da saúde à guerra.
Por detrás de todas as tecnologias que crescem ‘exponencialmente’ encontramos as tecnologias digitais de processamento de dados – é assim na biotecnologia sintética, no projeto de materiais avançados e na robótica, que não seriam possíveis sem a computação.
Graças aos avanços da computação e a novos algoritmos criados nas últimas décadas, a Inteligência Artificial (IA) galgou a posição de tecnologia de maior evidência no mundo de hoje, como eu, você e as torcidas do Flamengo e do Corinthians sabemos e estamos já cansados de ver todos os dias na mídia. No alto, sob a holofote principal, destacam-se hoje os ditos grandes modelos de linguagem (large language models – LLMs), que já estavam por aí antes mas tomaram o mundo de assalto a partir do lançamento do ChatGPT, no final de novembro de 2022. A IA chegou causando no verão passado.
O avanço da IA mudará o mundo do trabalho e dos negócios
Mas final de contas, o que é IA? Vai aqui uma definição livre, de minha autoria, que você não encontrará em outros lugares, mas que representa o estado atual da coisa: é um conjunto de soluções (métodos, técnicas, modelos) computacionais para entender padrões, gerar respostas e criar novos artefatos (textos, imagens, código de computador, vídeos, músicas, poemas…) com base nos padrões aprendidos.
Os modelos de IA que existem hoje ‘pensam’ como nós? Não. É possível que venham de fato a ‘pensar’ no futuro? Sim, mas serão necessários muitos avanços para que atinjamos a dita IA Geral. Quer saber sobre as questões fundamentais que devemos considerar para refletir se uma máquina (algoritmo) pode pensar? Leia este artigo pioneiro de Alan Turing. Quer saber mais sobre IA e impactos na sociedade? Assista a ótima entrevista do Silvio Meira no Roda Viva.
Daqui para frente, assumirei que você entende e aceita um fato: a ‘IA que já está aí’ (com seus limites e imperfeições) terá enormes impactos nas nossas vidas. O crescimento e a disseminação da IA gerarão inúmeras oportunidades, mas também colocarão em xeque a viabilidade econômica de empresas, indivíduos e países. O encurtamento da vida das empresas, comentado no início deste texto, sugere reflexões a todos. Em resumo, a Lei de Moore poderá atropelar eu, você, sua empresa e o país. Ainda estamos no início desse processo, mas os sinais são claros.
Escrevi há algum tempo neste post do LinkedIn que a IA escreve melhor do que 90-95% das pessoas que conheço. Mantenho a opinião e digo mais: conheço muita gente qualificada, em vários lugares, e faço essa observação à luz disso. O que será daqueles que escrevem ‘mais ou menos’? Ou daqueles que desempenham qualquer tarefa intelectual ‘mais ou menos’?
Sabemos há algum tempo que os algoritmos já são melhores que nós, humanos, em identificar padrões de quaisquer tipos, inclusive nossos padrões de comportamento. Agora, com o advento dos LLMs, assistimos aos algoritmos usarem padrões previamente assimilados por eles e se tornarem capazes de criar artefatos (textos, imagens, código de computador, vídeos, músicas, poemas, etc.) em alta velocidade e com qualidade superior a grande parte dos humanos. Exagero?
Recordo-me de dois casos que sugerem os possíveis impactos da IA. O primeiro deles surge desta matéria do Financial Times (sugestão: acesse o link, leia-a, confira quando foi publicada), que informava que computadores escreviam notícias na Thomson. Hoje, a Thomson Reuters é essencialmente uma empresa de IA aplicada a notícias e informações. Em tempo: você leu a matéria? Viu a data de publicação? Isso mesmo… 2006, há 17 anos atrás.
Pano rápido e chegamos a 2014 e ao segundo caso. No início daquele ano, encontrei um ex-colega, famoso advogado de alto gabarito e qualificação, e curioso por tecnologia desde sempre. Disse-me ele: “Roberto, tenho modelada uma startup para automatizar o trabalho de escritórios de advocacia. Hoje [na época do encontro], os algoritmos podem automatizar 95% de todo o trabalho que os advogados fazem no Brasil”. Imagine hoje! Imagine o que acontecerá para além de 2023.
O que isso significa na prática? Há pelo menos quatro efeitos combinados a considerar. Primeiro, muitas habilidades humanas se tornarão irrelevantes, de tal sorte que muitos profissionais verão seu trabalho ser automatizado e perderão seus trabalhos. Considerando diferentes tendência globais, especialmente o crescimento da tecnologia, este relatório do Fórum Econômico Mundial (WEF) indica que executivos sêniores de empresas globais esperam que 44% das habilidades humanas se tornem irrelevantes e que ocorra uma mudança de 23% da força de trabalho1 próximos 5 anos (a partir de 2023) – 83 milhões de empregos seriam destruídos e 69 milhões criados nesse processo.
Anote: quanto mais rotinizável é o seu trabalho, mais risco você corre. Segundo, a IA democratizará habilidades e competências, e poderá permitir que profissionais de desempenho mediano tenham incrementos de produtividade, como sugere este artigo recente na Nature. Terceiro, a disseminação da IA ressignificará o que é criatividade.
Escrever este artigo não é a mesma coisa que escrever para o New York Times, a Atlantic ou a Economist; poucos atingem o nível de excelência requerido por essas publicações, a IA não mudará isso. Quarto, o avanço da IA originará demanda por novas habilidades e competências. Você já ouviu falar em ‘Engenheiro de prompt’? Talvez possa ser o seu novo trabalho, em breve. Na prática, todas essas quatro coisas acontecerão ao mesmo tempo.
Qual é o ponto?
Não adianta reclamar ou esperar que o crescimento da tecnologia não venha a afetar seu trabalho, empresa, vida. Isso já está acontecendo. Ficar na defensiva não é uma solução viável para lidar com a IA. O caminho para evitar a obsolescência passa por abraçar a IA, por tornar-se ‘à prova das mudanças de IA’. Vejamos como fazer isso na prática:
- Os profissionais (isto é, cada um de nós) precisam aprender a usar a IA e ‘fuçar’ é o melhor caminho. O ambiente está em transformação e estamos todos aprendendo em tempo real – o segredo é colocar a mão na massa. Você pode fazer um dos vários cursos disponíveis em plataformas como Coursera ou Udacity, juntar-se ou criar um grupo de estudo ou uma comunidade. Conheci e gostei dos programas do I2A2. Junte-se ao time dos fuçadores.
- As empresas devem desenvolver capacitações, aprimorar operações e repensar seus modelos de negócios com o uso da IA. Para isso, como um primeiro passo, podem oferecer programas de formação e especialmente tempo para seus funcionários experimentarem a IA, conhecerem modelos de negócios habilitados por IA, testarem ideias. Como um segundo passo, podem montar times e realizar innovation sprints para gerar novas soluções e mesmo negócios. Todos esses processos devem ser estruturados, ter recursos alocados, métricas de desempenho e inputs de gente de fora da organização (oxigenar é preciso).
- Os países enfrentam o duplo desafio de disseminar o uso da IA nas suas economias e, simultânea e idealmente, criar vantagem em tecnologias relevantes. Isso passa, primeiro, por programas público-privados, em escala, que incluam formação de pessoas, extensão industrial, disponibilização de base de dados públicas (ativos públicos) para uso por empreendedores e empresas, criação de ambientes regulatórios que permitam o teste de tecnologias e a aprendizagem institucional, financiamento e apoio a projetos inovadores que usem IA. Segundo, por investimentos em pesquisa e desenvolvimento – não chegamos ao fim da história da IA, novos conceitos e métodos serão necessários e novas oportunidades emergirão. Esses desafios são distintos, e as condições de cada país também. Estratégia e coordenação são elementos chave sem os quais não há possibilidade de sucesso. Deixo para os interessados o exemplo da estratégia americana de pesquisa e desenvolvimento de IA.
Que venha o futuro. E não esqueça: ficar parado não é uma boa opção. O futuro vem rápido. Boa jornada a todos.
[1] A base da pesquisa do WEF pode ser extrapolada para um conjunto de 673 milhões de postos de trabalho e as estimativas apresentadas se referem a esse conjunto. O número total de postos de trabalho (formais e informais) no mundo é estimado em 3.283 milhões.
Roberto Alvarez é doutor em Engenharia, investidor em startups no Brasil e exterior, e Diretor Executivo da GFCC (Global Federation of Competitiveness Councils), organização global sediada em Washington.