Como jornalista e profissional focada em conteúdo e curadoria da informação, leio diariamente textos, artigos e matérias jornalísticas publicadas em veículos de mídia e revistas que ditam tendências culturais. São publicações com alto nível analítico de questões relevantes na agenda global.
Ao buscar informação de qualidade e análises de fontes de referência em diversos temas, procuro evitar cair no chamado “viés de confirmação” das mídias sociais de hoje, a tendência que temos de consumir ideias que sejam similares às nossas crenças e maneiras de ver o mundo.
Este texto é um exercício para responder com acuidade à pergunta sobre o que definiria o “zeitgeist” contemporâneo. Zeitgeist é um termo alemão que significa o “espírito da época”. É a síntese do conjunto do clima intelectual e cultural do mundo de um tempo determinado.
A expressão “zeitgeist” surge em 1769, quando o escritor romântico alemão Johann Gottfried Herder fez uma crítica ao trabalho do filósofo Christian Adolph Klotz. Isso ocorre séculos antes do surgimento e expansão das mídias sociais, das “bolhas” ditadas por algoritmos e do viés de confirmação que influenciam fortemente o “zeitgeist” da época atual. As redes digitais dificultam a definição do “espírito do tempo”, na medida em que é quase impossível escapar de armadilhas e polarizações do universo comunicacional.
A revista americana New Yorker publica esta semana crônica sobre a “provavelmente mais famosa obra de arte já produzida nos Estados Unidos”. Trata-se de “American Gothic”, de 1930, tela do artista Grant Wood. Um casal em primeiro plano veste trajes típicos da área rural do período. O homem, um fazendeiro, segura uma forquilha, e atrás dos dois aparece uma residência rural em Eldon, Iowa, semelhante a uma catedral gótica.
Famosa por suas análises densas e aprofundadas sobre temas culturais diversos, a New Yorker lembra que a pintura soou enigmática à época. “Seria uma sátira mordaz? Um realismo sombrio ou um patriotismo orgulhoso?” Um ex-diretor do Metropolitan Museum of Art, Thomas Hoving, hoje falecido, disse que a “imagem serviu como um teste de Rorschach para o caráter da nação”. O teste é um exercício projetivo muito usado por psicólogos para examinar características da personalidade e funcionamento emocional de pacientes.
Grant Wood pintou o quadro com “simpatia”, em uma época em que as cidades dominavam a cultura, mas eram muito menos típicas da nação americana. Mesmo assim, o pintor sofreu críticas ferozes e até ameaças de agressão verbal por moradores de áreas rurais norte-americanas. Em 1930, Wood foi “cancelado”, segundo o termo do jargão típico das guerras culturais do século XXI.
E qual seria o zeitgeist de 2023?
No mundo hiper conectado, com mais de cinco bilhões de usuários da internet, é impossível se descolar da dinâmica de funcionamento das redes sociais. Por isso é necessário debater as crescentes complexidades da comunicação atual, com a velocidade de disseminação de informações em nível global.
Além dos cancelamentos, há os memes e os “trending topics” que giram em torno de questões comportamentais, do conceito ESG (ambiental, social e governança), do capitalismo acordado (“woke capitalismo”), e da agenda da ONU para 2030, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre muitos outros fatos, como guerras, geopolítica, recessão …
Mais de meio século depois que o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas criou suas teorias da esfera pública e do agir comunicativo, milhares de pixels transformaram a maneira como notícias, conteúdos e narrativas influenciam a chamada opinião pública e a opinião publicada por milhões de usuários nas redes.
Vivemos todos (ou tentamos sobreviver) num mundo phygital, omnichannel, polarizado e envolto em guerras culturais, fake news e narrativas enviesadas. Criamos “bolhas”, um novo tipo de “comunidade” no ambiente digital, onde nos nutrimos de crenças e de opiniões similares às nossas.
Na década de 1960, o filósofo e comunicólogo canadense Marshall McLuhan previu que o mundo seria conectado em uma “aldeia global” unificada culturalmente por meio da tecnologia. O “profeta” McLuhan acertou na previsão da conexão global com a internet. Mas o mundo atual está demasiado longe da unificação cultural. Sua frase mais famosa – “o meio é a mensagem” – destoa da distopia que domina o ciberespaço. O meio é tóxico e a mensagem é o veículo para o cancelamento de bilhões de internautas.
Miriam Moura é consultora de curadoria e conteúdo da Oficina Consultoria.