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O Detetive

Branca Maria de Paula

Desde o século XIX ele frequentava todos os teatros em busca da atriz, mas ela estava sempre em outro lugar, ofuscando as luzes. Percorrera o país de ponta a ponta, sem a sorte de encontrá-la. E mesmo hoje, tanto tempo depois, não estava certo daquela que procurava. Mas procurava, ainda. No começo, questão de honra. Depois, uma obsessão. E agora, reconhecia, sua própria razão de existir. Entreato, sua vida deixava de ser estúpida, ganhava sentido exato.

O detetive esquadrinha o palco, ponto por ponto. E nada.

Um terrível desatino – foi o que lhe contaram, misturando falas.

É agora uma velha dama, certo. Mas seria mesmo indigna?

Ele se pergunta, sentado na primeira fila.

Apruma-se na cadeira e ajeita os óculos.

Lembra como se fosse ontem o primeiro retrato falado da atriz. Sim, porque depois vieram outros, com pistas desimportantes e contraditórias. Era ainda jovem, diziam uns, ancas fartas, seios volumosos, apetrechos coloridos, pele clara, olhos acastanhados, fala mansa, tão discreta, exagerada, exibida e cheia de empáfia. Ambiciosa. Atrevida. Engraçada, ah, engraçadíssima! Um desmaiou de rir, outro teve um ataque e se finou. Porque ela ultrapassara os limites. Cruzara a linha e se lançara do trapézio sem garantias nenhumas. Vôo livre, salto mortal improvisado?

A cabeça da atriz é sempre um pulo no escuro.

O fato é que deixara o teatro de alma lavada, sob quentes aplausos. Enfim, vingada.

Ele lembra como se fosse hoje o primeiro crime. Sim, porque depois vieram outros…

Mandou que fechassem todas as saídas, portas e janelas. Procurou atrás das pesadas cortinas, nos camarins e camarotes. Revirou cenários e figurinos. E, no final da busca, o golpe fatal: ela escapara. Corria solta pela rua, a atriz. Atrás dela, uma multidão alucinada. Para abraçá-la ou fazê-la em pedaços? Jamais conseguiu apurar. Mas, pensando melhor, poderia alguém ser cultuada depois de tal sandice?

Ela não ficará impune, jurou ao diretor, que a queria submissa e menor. Então passou a persegui-la dia após dia, ano após ano, décadas, e mais.

Teria um século se passado? Teria outro milênio surgido? Ah, não importa, ele não quer saber. Apesar da permanente vigília, outros crimes se sucederam à vista de todos, mais violentos, mais cruéis. Trágicos.

No entanto, as pessoas sempre exageram, pontua o detetive para si mesmo. Teria matado os próprios filhos, contam uns, para se vingar do marido; e depois fugira numa carruagem alada, onde já viu!

Quando mata, seus olhos ficam azuis – afirmam outros.

Aos oitenta e muitos anos, reportam ainda, assassinou o marido porque ele encarnava o fantasma que ela queria a qualquer preço esquecer.

Ai de mim, se lamentava a atriz. Ai de mim!

Além de tudo, amoral e anarquista – queixa-se o detetive.

Depois suspira, melancólico. Os tempos mudaram, de fato. Não as celeumas da alma.

Ele torna a ajeitar os óculos e redobra a atenção, sentando-se na ponta da cadeira. Segundo o iluminador, ela estaria em cena esta noite. Mas, por Deus, onde?

Quando pensa identificá-la, eis que ela vai diminuindo de tamanho, diminuindo até desaparecer. Torna-se um risco, um esboço no chão do palco. E outra história se cria.

Depois do primeiro crime, a atriz nunca mais foi a mesma.

Nem ele.

Ilustração: Sérgio Luz
Ilustração: Sérgio Luz
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